sábado, 6 de junho de 2020

Aprendendo o tempo com o teto inundado

  Já está me enlouquecendo, passei a manhã tentando resolver a questão. Achei que fosse simples, como das outras vezes. Bateria a campainha do vizinho do andar de cima, três frases apenas e ele ligaria para o bombeiro, duas horas depois, estávamos resolvidos.
  Só trocamos palavras para este caso específico; morar no apartamento abaixo do dele me possibilitou o amargo que é conhecer um homem gentil somente da porta para fora. Os apartamentos nos dão essa estranha oportunidade de ouvir as vozes sem moldura. Sei mais dele do que muitos que convivem com ele há muitos anos. Sei mais da sua conduta moral do que o seu sócio, do qual ele fala muito mal com um tal de Adalberto. Sei do apartamento da mãe que ele vendeu e que diz à ela que está negociando. Sei que persegue a ex-namorada, que trai a atual e que esteve tratando de uma doença por meses, que era contagiosa e que não contou a nenhuma das duas.

  Troquei de roupa, coloquei a máscara inseparável da pandemia, dessa vez confortável em esconder meia face para falar do mesmo problema de anos com o insuportável homem do 301.
  Não é agradável que o meu teto seja o chão dele. Não é confortável ouvir sobre os seus negócios, romances, vida familiar, opiniões políticas e sobre qualquer outra coisa. Não é em paz que o ouço destratar as mulheres que entram no seu apartamento. Não são convidativos os seus gritos, seus destemperos, ameaças, cobranças de "um para o cafezinho" de clientes que já experimentam o castigo por alguma ilegalidade.
  De novo as três frases, com o doutor a quem eu só chamo de senhor, de novo o sorriso falso do vizinho, de novo o bombeiro, mas nada se resolveu. Como suportá-la por mais um dia?

  - Sério que não tem mesmo jeito para hoje? Mas o banheiro vai inundar. Não é exagero. Não são gotas finas. São grossas, constantes. Não tem como fechar um registro enquanto isso? Não tem como trocar o tal do encanamento? Mas é insuportável. São três da tarde e nada.
  Eu só conversava com o bombeiro, enquanto o vizinho tentava intervir; solicitando uma calma que ele mesmo  nunca teve para absolutamente nada. Nem com os clientes ao telefone, nem com as namoradas no meio da noite, nem com a mãe na escada, nem com o cachorro da casa ao lado. E agora me pede calma, porque é só uma goteira?
 - Não é só uma goteira!É uma goteira espessa, barulhenta, que sai pela lâmpada no meio do meu banheiro. O teto já está com várias manchas úmidas, a luz eu não posso acender. E vem desse apartamento, entende? Porque das outras vezes ele adiou um conserto definitivo, sabe? E se o teto cai? Ele riram.
   - O jeito é esperar.
   A única frase do bombeiro me fez não gostar dele, quase tanto quanto do vizinho.

  Vencida. Desci as escadas e voltei ao trabalho. Aumentava o volume da música, à medida que me lembrava da goteira; agora, depois de tantas horas ouvindo o mesmo som constante ele já tinha ficado em mim. Não adiantava música.
  Passei a manhã ouvindo as gotas chegarem ao balde. Primeiro, era o eco do balde vazio e a gota atingindo o seu fundo, espalhando gotículas pelas laterais do balde e chegando ao piso, agora é a gota ao encontro da água gotejada. Paciência eles pediram.
  A cada gota, maior a minha angústia. É mais uma gota a encher o balde, é mais uma gota próxima a cair, é mais uma gota, atrás de outra gota; em um movimento constante de passagem e desperdício.

  A goteira me incomoda muito mais do que as risadas da vizinha da casa ao lado, quando bebe ou lava roupas e a voz do filho adolescente dela, que ultimamente grita a cada nova fase terminada do seu jogo. As gotas no balde são o meu teto dependente de dois homens que pedem calma porque tudo já será resolvido, mas que permanecem no corredor comentando a reprise de alguma copa de futebol, cujos goleadores muita gente só se lembra de um vago apelido. 
  Quero entrar sem guarda-chuva no meu banheiro de novo, quero o teto do branco que eu escolhi há dois meses, quero acender a lâmpada e ver o meu reflexo no espelho enquanto escovo os dentes, quero não me sentir com raiva pelo chão molhado sem aviso prévio ou desculpas gentis, depois do aviso. Quero o meu silêncio barulhento de apartamentos com gente o dia todo.

   A goteira é uma técnica de tortura que o homem do apartamento acima deve conhecer muito bem, porque defende o Estado de exceção. Na tortura as gotas são dirigidas ao meio da testa e depois de algumas horas provoca uma dor lancinante.
  Em mim, as goteiras também atingem a um mesmo ponto, ainda que eu não esteja amarrada e com muito medo.
  A goteira é a minha angústia de não ser levada por um tsunami só; de não ser arrastada até alto mar ou até chegar logo ao continente. A goteira é o meio de mar num bote que não sei se chega, que não sei se aguenta, que não sei o porquê estou nele. É o tempo  passado na medida de um balde, é o tempo que se materializa em água, enquanto eu evito a chuva.

  Gotejar é o instante da vida onde não se tem saída. É esperar que seque, que alguém corrija o que não vai bem no chão de cima, para o teto voltar a ser seguro. É o tempo gasto na espera, cada gota um pouco mais de angústia e tempo passado.
  Depois é o balde cheio, com todos os minutos do sofrimento fino e invisível para qualquer vizinho, bombeiro, síndico, zelador. Gotejar é a vida quando não é avassaladora nem pacífica, este estado de susto nenhum, mas sono perdido.
  A torturante gota que molha o topo da cabeça em dia frio e lembra que ainda existe o incômodo, embora teto algum cairá sobre a cabeça; ensina que a vida às vezes vem em conta-gotas, é lenta e parece não surtir efeito algum.
 Gotejar é suportar a perturbação até o dia em que a paz do silêncio ou barulhos menos insistentes e mais cotidianos voltem a frequentar o que aceito como lar. Gotejar ensina a querer outra coisa depois da infiltração, a fazer mais com os minutos contidos num balde.



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