quarta-feira, 22 de julho de 2020

Desejos na pandemia

  Comer algodão doce, sair para nada; sem hora para voltar ou itinerário certo. Ir a um parque, sentar em um balanço, engasgar com Coca-cola. Subir uma ladeira, perder o fôlego, sentar na calçada e continuar depois.
  Visitar uma exposição, conversar com um artista sobre a vida, ouvir a suas verdades; sem me lembrar das próprias. Mergulhar em  água gelada e ao ar livre. Andar nua. Atravessar uma ponte, um medo, uma fase ruim. Depositar flores no túmulo de um desconhecido, no mais abandonado, no menos bonito.
  Beber cerveja e comer torresmo em pé, na porta do botequim movimentado. 

  Sustentar uma ideia, defender um princípio, mesmo que não conquiste pares. Pintar as minhas próprias unhas, começando pelas dos pés. Arrancar o siso e não esconder os cabelos brancos.
   Depilação sem dor, amor sem dor, despedida lenta molhada e temperada com sal e desejo de boa sorte.
  Buscar o cartão de vacinas na casa da mãe e tomar todas as que faltaram antes.

  Escolher um apartamento com um corredor cujas paredes acolham todos os quadros. Pintá-las com Suvinil cor terra batida e escolher uma moldura, em algum comércio de antiguidades, para um espelho que será pendurado na parede do fundo.
  Comprar uma chaleira que faça barulho quando a água ferver, procurar um relógio cuco na mesma loja e uma cadeira de barbeiro. Levar para casa o passado de alguém, sem temer a carga das histórias. Só construir outras.
  Conhecer novos vizinhos, me acostumar com novos barulhos, às suas vozes, portas batidas, chinelos arrastados no piso de cima, secadores de cabelo às sextas à noite, aquecedor no apartamento do idoso, chuveiros antes das seis, amores de madrugada. Escolher vasinhos com suculentas no supermercado e levar junto os bonsais.

  Fazer a matrícula em uma turma de flamenco e de mecânica para automóveis, exercitar talentos novos ou, ao menos, conhecê-los. Comprar novos bloquinhos de mesa e canetas de cores que não sejam azul e preta. Visitar a minha tia e escrever te amo na primeira página de cada bloquinho da dezena que eu levarei para ela.
  Aprender a respirar debaixo d'àgua e parcelar uma viagem com um programa de mergulho. E se a viagem não vier, estar pronta para não me afogar. Decorar três novos poemas e continuar declamando o de Florbela em qualquer lugar, por qualquer razão. Doar livros, mas não os que ganhei, ler as dedicatórias antigas, comprar novos livros e presentear com livros. Morar com os livros.

  Finalmente conhecer você, gostar de você, passear pelo seu universo e não ter receio de me perder. Não pisar nos sonhos de ninguém e não deixar que chutem os meus. Participar de associações ou não, clubes do livro ou não, mas não me sentir sozinha demasiado para precisar de um grupo nem suficientemente acompanhada para não querer.
  Comprar mais roupas que não precisem ser passadas, tentar deixar que sequem sob o sol, que seja uma fresta. Deixar as janelas mais abertas, que o vento entre, que a chuva escorra, que o calor deixe o mormaço na sala. Falar e ouvir mais, escrever e fotografar só o essencial. Lavar escadas, escorregar descalça na espuma.

  Escolher parceiros de dança, de copo, de lutas e de oração. Manter a mente atenta e o coração distraído. Levantar o queixo, os ombros e acessar a minha natureza de batalha. Escolher a trilha sonora do dia, ao acordar, e não deixar que ninguém desligue a música em mim.
  Torcer as articulações e alongar os músculos, inspiração profunda e exala. Solta. Aprender o tempo de deixar ir e saber ir. Gostar mais daqui e aprender a amar qualquer lugar e tempo.
  Não anotar os defeitos, porque eles mudam nem cristalizar qualidades, porque elas cansam. Calçar um sapato de número maior, aprender a me esticar na cama toda; não preciso ser encolhida mais. Alcançar um coração e deixar o meu ser tomado.
  Colocar limites, até entender a marcha do cavalo; ampliá-los aos poucos, até ele reconhecer a liberdade de ir sem machucar. 

   Repassar os sonhos todas as manhãs, ainda na cama. Contá-los a alguém, sempre contar com alguém e ter alguém que conte os próprios sonhos e comigo.
  Quando me lembrar desse tempo, no qual eu piso agora, ainda saber que não tinha que ser assim. Aprender a ensinar que a Terra não é plana, que a arma não é segurança, que não é natural desaparecer ou morrer só. Começar, de novo, de um outro lugar e escolher parceiros que dancem, que bebam, que lutem e que não tenham vergonha de chorar.





4 comentários:

John disse...

A pandemia anda te rendendo bons textos! Amei este!❤️

Amanda Machado disse...

Obrigada!!! Tem rendido boas coisas sim. Filmes, músicas...

John disse...

Conversas, textos e quiçá um artigo!😊

Amanda Machado disse...

Sim!!!A pandemia também tem sua face abastada. :)