domingo, 19 de julho de 2020

O que eu não disse da nossa vida juntas

  Eu não disse para ela, todos os dias, o quanto a sua existência parecia legitimar a minha. Talvez não tenha falado nunca. Porque o cotidiano empurra para os esquecimentos quase tudo o que realmente importa. Esquecer de dizer as delicadezas que alguém ao nosso lado merece, esquecer de olhar sempre com os mesmos  olhos de amor que nos apresentaram ao tal ser, esquecer que é um milagre o encontro; e que somos muito maiores depois dele. Esquecer de dizer que o brilho dos olhos dela é de uma beleza de fazer chorar; esquecer de chorar de amor por ela.
  Faltou dizer que o apartamento foi tão mais lar depois da sua chegada e que nada nele era a minha casa antes dela. Faltou dizer que ela inventou o lugar onde eu me senti realmente, e pela primeira vez, em um lugar meu.

   Eu não disse que o dia em que a resgatei, eu é quem era salva. E que cada ferida dela cicatrizada, era uma minha que eu finalmente curava.
  Faltou dizer que a coragem dela inspirava a minha, que a minha dedicação a ela, tão elogiada, era muito menor do que a dela comigo. Faltou dizer que o rosto dela na fresta da porta da varanda, procurando pelo autor de um barulho qualquer na casa, é a cena que nunca vou cansar de rememorar. E que as minhas chegadas, desde que a conheci, jamais foram tão amorosas.
  Faltou dizer que ela trouxe nas suas coisas tanta profundidade, sem nunca dizer nada se encontrasse nos livros. E que todo o tempo que dividimos, passando tão lentamente para mim, acabou por me fazer ignorar que para ela era demasiado rápido.

  Eu não disse que os catorze anos mais determinantes da minha vida ela esteve neles. É claro que ainda há muito a ser visto, vivido e descoberto, mas que tudo será a consequência de quase uma década e meia, em que ela e eu éramos par. Eu não disse que não sei dançar sem ela, que em coreografia nenhuma eu me encaixo se ela não está.
  Faltou dizer que a maternidade que ela não experenciou, foi o meu maior desafio e ela me amparou quando éramos nos duas e a filha que eu acabara de conhecer. Faltou dizer que ela era a irmã mais velha; que eu a amei primeiro e descobri que poderia amar muito mais, sem nunca acabar afeto.
  Faltou dizer que família também é assim, ultrapassa genética, espécie e não se envergonha de ser inusitada.

 Eu não disse que é insuportável não tê-la para sempre; porque eu não sabia que não a teria. Eu esqueci do tempo e, agora, o sinto tão dolorosamente. Chega a latejar o peito, cada minuto em que eu me lembro que você não voltará. O tempo nunca me confrontou tanto e não tenho você para me consolar de não ter você.
  Faltou dizer que no dia seguinte, a casa ainda era sua, os seus hábitos pareciam circular pelos cômodos e que por muitos instantes eu a procurei; ainda a procuro às vezes. Não me acostumei a ter essa outra vida em que você não partilha e que os seus olhos de compaixão não me olham quando eu preciso.

  Eu não disse que eu não sei lidar com partidas; porque eu ainda não tinha me sentido tão irremediavelmente abandonada. Faltou dizer que eu nunca a abandonaria e que sei, que por opção, você também não. Faltou eu ter consciência de finitude e que tê-la agora é uma dor física, filosófica e existencial. Eu não sei se aprendo a dor, o tempo e os finais ou se são passageiros esses entendimentos; o que eu sei é que não sou a mesma e queria que você também conhecesse essa nova pessoa.
  Faltou dizer que eu sonho com os seus olhos marrons e profundos, me amando. Que acordo com mais saudade, mas grata por vê-la ao menos enquanto durmo.

  Eu não disse que esse amor não é do alcance de outros. Que essa singeleza de sentimento é somente nossa. E que nunca pareceu uma questão para ninguém, mas que agora se preocupam com o quanto eu me ocupo da sua ausência. É isto, ninguém sabe o que não sente.
  Faltou dizer que tudo é mais frio, maior e difícil porque não tenho seu rosto na porta da varanda. E que todo o amor que eu sinto é tudo o que tenho e quero ter agora. Eu já não me lembro o que eu disse, mas acho que sempre faltou. Por que não damos tudo? Por que não podemos ser amorosos e sedentos todos os dias? Por que o cotidiano nos distrai tanto?

  O que eu não disse da nossa vida juntas é que a minha memória mais importante sempre será a sua voz, a sua calma, os seus olhos. Que a sua ausência só é imensa, porque a sua presença ainda é a maior que eu conheci.
  Faltou dizer que se eu soubesse que era despedida, tinha tentado alargar mais o tempo, a minha casa e o meu peito para você caber mais neles. Faltou dizer que você sempre me salvou e que me deixou náufraga e desesperançada, por ora. Mas que logo vem a onda e com a coragem, que eu quero ter aprendido com você, eu vou com ela e chego a algum lugar para respirar de novo.


Para Renata, cuja tristeza não sou capaz de alcançar. Mas gostaria muito de segurar uma das pontas dessa dor imensa.

                           

3 comentários:

Unknown disse...

Quanta delicadeza e profundidade nas suas palavras.
Como te acho no Instagram para acompanhar seus textos?

Kellen disse...

❤❤❤❤

Amanda Machado disse...

Ah...muito obrigada!
No instagram é amandamachado_parecolouca