sexta-feira, 31 de julho de 2020

Feliz aniversário para você que ficou no sinal amarelo

  Estão suspensos os embates, as portas na cara, as ligações recusadas e as verdades únicas. Por ora,
sem  indiretas, meias verdades, meias voltas ou teimosia inteira.
  Sem acusações nem defesas, sem choros nem juízes. Não vamos pedir o VAR para a jogada, confiaremos no depoimento de quem deu o chute, tampouco requisitaremos autópsia para as razões de uma morte natural ou reconstituição para a cena; não interessa de onde partiu a primeira estocada. A primeira e a última têm, agora, o mesmo valor; do silêncio.
  As últimas palavras aceitarão outras depois, o nunca mais acabou de ser para sempre. A última cena não foi ao ar ainda; tudo continua, embora não atuemos mais na mesma trama.
  Já não sei mais se usava óculos ou não, se usou aparelho nos dentes e quando foi a última vez que sorriu para mim; possivelmente foi ao telefone, antes de eu nunca mais atender você.

  Não vou contar os seus segredos, estou segura que também não publicará os meus; porque nem nos lembramos deles. Na última confidência já não estávamos lá. Talvez porque não soubéssemos que era a derradeira.
 Acho que gaguejava quando estava nervosa ou suava as mãos; ou a minha memória é pior do que eu pensava. Tinha olheiras ou orelhas de abano. Tinha alguma cicatriz ou trauma de infância. Os avós eram vivos até os dezesseis dela ou estiveram na formatura.
  Sonhava com chuva de arroz ou tinha uma receita de bolinho de chuva ou era pão de queijo? Não, o pão de queijo era da outra.
  Tinha sobrenome árabe, sotaque das meninas de Minas. Baixa estatura, cabelo comprido e depois cortou e depois deixou crescer de novo. Era de esquerda, dizia. Foi à direita, eu vi.

  Eu também não era essa; talvez a mesma altura, o mesmo sotaque, o sobrenome bem brasileiro. Mas ainda assim, era outra e não saberei explicar a diferença. Que é brutal e sutil num mesmo tempo. E foi aí que não dividimos mais. Bastou essa virada, vírgula, dobra, esse pequeno chacoalhar do solo sem nem registro no sismógrafo, bastou esse ínterim e não estivemos mais.
  Eu não me mudei para a China nem você; não estou em Cuba, muito menos você. Não estou na Rússia e você no Turcomenistão, mas a nossa geografia nunca mais se esbarrou. Minhas fronteiras são mais abertas do que antes, no entanto, você nunca mais apareceu aqui. Eu vejo mais pessoas, ouço vozes mais diversas e visito muito mais histórias, no entanto, em nenhuma linha que eu leio você está.

  Os bares são outros e ninguém nunca mais derrubou o seu copo para eu oferecer o meu. Os boletos são só nossos, as decisões parecem muito mais pesadas a cada final de dia, os garotos cada vez mais imaturos e não falamos mais sobre isso.
  O sinal era amarelo e eu atravessei, você esperou e o vermelho logo veio; ou foi o contrário. Um segundo e eu nunca mais vi você. Não sei se verei ainda, se vamos querer voltar nesse instante da rua, mas foi nesse segundo que uma muralha se ergueu entre nós.
  Covardia ou coragem; desilusão ou entendimento; vergonha do outro e orgulho de si ou o contrário. Tijolo por tijolo e nunca mais eu soube dos seus olhos ou você dos meus. Que estranho e comum é isso, das pessoas serem outras e não suportarem as outras que se tornam outras.

  Não tem mais copa do mundo de ressaca, não tem mais aula na Economia, não tem mais almoços no ICB. Não tem mais trabalho de estatística nem sabemos mais sobre a monitora de cartografia. E isso somos nós. É muito, mas tão pouco.
  O segundo entre alguém atravessar e outro ficar é que determina. Não tem passado que oriente no segundo em que o sinal se torna amarelo. E isto só é claro depois que atravessamos a alguns segundos amarelos.
  Por isso é que os espaços-tempo, antes e depois dos sinais amarelos, não devem ser desperdiçados. Porque os tijolos são silenciosos e precisos. 

  Hoje não vou mais poupar tempo, vou gastá-lo até o último segundo; o meu e o dos outros. Vou aceitar os débitos sem luta, não vou poupar. Só vou gastar. Palavras, telefonemas, todos te amo, nenhum te odeio, o grão de milho quase-pipoca, o troco em balas sempre, o gole quente final da cerveja, o confeito doce do bolo. Nada sobrará.
 Vou esbanjar tudo. Ficar velha e pobre, se chegar à velhice e se não receber nada em troca. Vou gastar tudo antes do sinal ser amarelo de novo.

  Feliz aniversário para você do outro lado do muro. Feliz vida para você que eu não sei por quais ruas anda, quais semáforos atravessa ou espera.
 Feliz aniversário para você com quem eu não falei mais, vida longa e com saúde para você que eu não reconheço, mas conheci um dia.
  A minha memória apagou traços, lembranças, trejeitos, confidências e desejo de futuro partilhado, porque alguma coisa se quebrou sem o nosso esforço de recolher e colar. Mas do aniversário eu me lembrei o dia todo. Que engraçado é isso de nos perdermos sem apagarmos tudo. Feliz aniversário para você que ficou no sinal amarelo. É assim que é também.




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Amanda,

Mais sucinto nestes tempos. As formalidades esvaíram.
Seu texto é de uma qualidade incrível, Traduz a dor, a percepção do outro, a solidão do que não foi, traduz o retrato que não tirei no dia que fiquei no sinal vermelho. Texto de enorme carga emocional, tal qual a que me abraçou ao lê-lo.
Me ocorreu uma música da Ângela Maria, que a Bethânia gravou, sei lá, pareceu com o texto. https://www.youtube.com/watch?v=eD-6KY85QJE

É isto aí!

Amanda Machado disse...

Caro Paulo,
sucinto, mas presente...que bom revê-lo para um café. Sempre tão generosas as suas leituras! Que bom que o texto o atravessou, acho que só faz sentido assim; fico emocionada quando este encontro acontece.

Não conhecia esta canção ou não me lembrava dela...Grata pela partilha da música e dos sentimentos.

Abraços