domingo, 2 de agosto de 2020

Prepara um mundo onde talvez ninguém chegue para habitar

    Refoga a cebola, só depois frita o alho, dispõe os pedaços de frango na panela e se vira para a pia molhada, quebrando a embalagem do supermercado, para fazer menos volume no lixo. É um ritual que se repete há anos e esse é sempre o início de um mundo.
  Não consulta, sabe esse ofício antes de aprender a escrever o próprio nome; sabe antes de conhecer o seu nome. Deve ter sido assim a criação do mundo, pelas mãos resilientes de uma mulher.
 Dobra os cobertores, estica os lençóis, estende a colcha, joga-a três vezes antes de cair exata na cama,  pescadora que maneja a rede. Mas, na dela, nunca vem nada. Estica a colcha, que adere muito lisa sobre o lençol.

 Recolhe as roupas do varal, dobra-as, empilha-as delicadamente sobre uma toalha de banho também recolhida e as fecha numa trouxa; que não é a de partida, porque é sempre a última a sair, a se deitar e a comer o frango.
  "O que chamam de amor é trabalho não remunerado", abaixo a cabeça enquanto leio o artigo. Se eu contar a ela sobre o que eu acabo de ler, vai ficar confusa no primeiro segundo, sorrir logo depois e negar com um gesto repetido de cabeça; de um lado para o outro. Ela tem um mundo a ser construído diariamente.

  Prepara o  café como se esperasse visita, nunca faz uma ou duas xícaras. Todos os dias despeja um pouco de café no ralo da pia. Sobra. O café abundante sempre acaba por ocupar as ausências das tardes dela; silenciosa, absolutamente sozinha e regada à três xícaras cheias de café fresco.
  Desperdício de pó, água e expectativa. Todos os dias, os três escorrem pelo ralo, todos os dias são repostos à beira do fogão de quatro bocas.
  A água ferve na chaleira cheia e quatro colheres de pó já esperam no filtro de papel. Não adoça o café porque não sabe o quanto de açúcar é do gosto da visita. Coloca uma toalha na mesa, enquanto o café escoa para dentro da garrafa térmica, tira a manteiga, o queijo e uma compota caseira de goiaba da geladeira. Checa o coador, fecha a garrafa, distribui duas xícaras em cima de dois pires, pega o pedaço de bolo em cima do armário e um pote de biscoitos. Se senta e não serve o café ainda; espera pela campainha.
  - Já está tudo pronto.
   Narra para si.

  Escreve uma lauda que aparentemente não servirá para nada nem a ninguém. Escreve comprometida com cada palavra, obcecada e completamente tomada pela tarefa; porque tem, porque é dela a incumbência de inventar esse mundo que ainda não nasceu. Prepara os parágrafos para caberem os acontecimentos cotidianos e inusitados.
  Escreve  uma página de carta em que não inclui destinatário. Parece sempre um desperdício isso; não ter direção.
  Escreve discursos que ninguém ouve. Toma notas que só interessam a si, faz resenhas de livros desconhecidos, cria listas sem nenhuma finalidade prática, escreve confidências entre receitas de bolo, versos em comunicados administrativos e organiza antologias de diálogos ouvidos no ônibus. Um outro mundo que não sabe se chegarão a habitar como ela. Talvez ecos, abismos, pontes vazias para o nada, escadas que terminam antes de um novo andar.

   Preparam os filhos sem conhecê-los, sem saber que mundo frequentarão. Se munem de psicólogos, instrução formal, dentistas, futebol, dança, liberdade e rigorosidade, não traumatizar, não deixar que flutuem em mar aberto. Limitar e estimular. Criativos, inteligentes, generosos, o que Deus der, que tenha saúde, que seja feliz e só.
  Não sabe se o útero será capaz de sustentar essa vida não planejada. Não tomou zinco, sabe que a ferretina já era baixa há tempos, tem medo do vírus e do abandono paterno. Vai ter um filho sem pai? Vai repetir a própria história? Será que pertence a uma casta fadada à maternidade heroica? Não sabe fazer tricô, mas já viu uma lista de enxoval que deve levar à maternidade. - Não tem mais cueiro - vai dizer a futura avó. Vai comprar uma cadeira do bebê para o carro, uma para a mesa de jantar,  outra para levar para passear. Batizar sim ou não, furar a orelha sim ou não, nome curto ou homenagear alguém, normal ou cesariana, humanizado o que é? Ao menos terá cadeiras para esperar ela fazer o mundo para ele.

  Corta as letras do alfabeto em um papel colorido, desenha flores em um cartaz de ajudante do dia. Lava garrafas pet e separa as tampas, ambas podem ser usadas como peças de um jogo, suporte de letras, números, faces divertidas de animais. Ensina o alfabeto - letra palito e cursiva -  todos os dias esse mesmo alfabeto, anos de letras coloridas e olhos brilhantes. Um dia começam a desvendar uma palavra, letra por letra,  e meses depois já inventam histórias no papel.
  Ensina lavar as mãos, dividir a merenda, jogar o lixo no lugar certo, ajudar o colega, respeitar o lugar na fila e a se espantarem com as injustiças. Ensina uma palavra nova, a consultarem o dicionário, a não terem medo de pensar, a contarem seus sonhos, a somarem e subtraírem certezas. Ensina e espera o impossível do aprendizado. Dizem que trabalha para um tempo que ainda não chegou. 

  Não faz sentido, prepara um mundo para ninguém ou, talvez, ele já seja essa preparação constante e infinita para sozinha habitá-lo. Prepara um mundo de abstrações espantosas e materialidades comezinhas e não sabe se alguém baterá à porta antes da primeira xícara. Passa um pouco da compota no bolo, corta-o em pequenos pedaços e sente o cheiro do café ao abrir a garrafa cheia. Despeja um pouco dele na xícara, mas fica atenta a qualquer som. Pode ser que demorem a encontrar seu apartamento.
  Ajeita o parágrafo na linha certa, o frango na panela, o pó no filtro, compra um lugar de espera para o filho, que nem sabe mesmo se chegará, se lembra da ordem das letras no cartaz e quem sabe nesse mundo que ela cria alguém um dia venha habitar? 




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Amanda!!
texto de uma elegância sobrenatural. Permite ao leitor estar presente na vida da protagonista. Muito lindo!!!

Amanda Machado disse...

Ah...Paulooo...
Muito obrigada pela leitura e pela vinda tão delicada!

Abraços! Ótima semana!