terça-feira, 1 de setembro de 2020

O choro não é livre na pandemia

  É desconcertante chorar, em público, na pandemia. Porque a máscara cria uma barreira na qual a lágrima se acumula um pouco, entre as pálpebras e a costura em cima das maçãs do rosto. A máscara é um anteparo e evita as correntes. Mas se a água desce bruta, logo sobe pela barreira e atravessa por cima dela.  
  Generosas lágrimas invadem ao menos três geografias da face; há a formação de uma lagoa debaixo da pálpebra, uma passagem entre os olhos, passando pelo nariz, lábios, até chegar ao queixo e uma outra, que é essa que escorre por cima da máscara e que, em segundos, alcançam as orelhas ou o elástico da máscara. Não há logística compatível entre o choro e a proteção contra um vírus.

  Numa pandemia, não há segurança com choro. Porque elas não escorrem naturalmente, mas param até o tecido absorvê-las lentamente.  E por isso embaçam as perspectivas e atrapalham, por um momento, o senso de direção de quem chora.  É duplamente arriscado: pode-se morrer atropelada ou contaminada depois de alguns dias passados do choro.
   Morte instantânea ou arrastada;  por politrauma ou por insuficiência respiratória. Risco fatal não calculado, se não estiver avisada de mais essa limitação.  Então, entenda: chorar em público na pandemia é caso de saúde pública.

   Chorar na pandemia é o caos. Como evitar as lágrimas escorrerem sem colocar as mãos na face? E não devia, por prevenção à contaminação por coronavírus. Está em todos os manuais prescritivos essa ordem. Mas por um segundo, assume-se o risco - que seja rápido então! Mas a mão está coberta por uma camada de álcool gel, que em contato com as lágrimas, que já escapam, deixam-nas mais espessas.
   Ou seja, o que já era de difícil controle, torna-se um desafio ainda maior com lágrimas grossas e incontroláveis, vertendo pelos olhos ultrassensíveis à esta altura. Apela-se ao crítico interior:
- Mas vai chorar agora, a bonita? E vai fazer a vítima e morrer de Covid, por causa de choro?

  Chorar na pandemia é uma indeterminação a respeito da própria imagem. Sobre se os transeuntes percebem que é choro legítimo e autêntico ou  se é o caso de uma irritação nos olhos, por causa da máscara. Tentamos o segundo, mas pouco importa se com sucesso, pois qualquer que seja o motivo dos olhos encharcados, é um risco iminente.
  E a mão que foi aos olhos não pode tocar o botão para chamar o elevador. Por precaução, precisa esperar mais de dez minutos para que alguém chegue e tome a iniciativa de encostar levemente o dedo sobre o botão. E ainda precisa contar com a empatia da nova companhia para apertar o botão dos dois andares, o dela e o seu. A voz de choro, nesse momento, ajuda. Quem não atenderia aos apelos de uma mulher que chora com meia face coberta por um tecido molhado?

  Chorar na pandemia depois de ir ao dentista é uma questão de complicada definição. Fica difícil determinar o real motivo para as lágrimas; será o dente que não foi anestesiado, porque a boca audaciosa disse que não sente dor ou é pela a rua cheia de normalidades, enquanto enterramos mais mortos a cada dia?
  O choro é por desesperança ou só cansaço? Minha avó dizia que todo mundo chorava mais de cansaço do que de tristeza. Me lembrei de que ela nunca chorava e, mesmo assim, eu a achava tristíssima. Não sei se concordo, mas acho que há um cansaço na entrega que se tem quando deixamos escapar o choro. Sem luta; só uma desistência morna e absoluta. Chorar é uma espécie de dança contemporânea - é preciso entrega.

   Chorar na pandemia é inusitado, porque corre-se riscos, coloca-se os outros em risco e não se explica não ter chorado em casa, onde passa a maior parte das horas, há meses. Tem quarto, cama, fronha limpa, chuveiro quente, cozinha acolhedora, banheiro com uma acústica fantástica para qualquer grunhido, mas então por que arriscar-se a chorar na rua? Entre pessoas desconhecidas e vírus ameaçadores.
 Mais uma razão para continuar em casa: o choro não é livre na pandemia. O choro precisa estar represado na segurança das próprias paredes. Se for chorar, contenha-se em casa; não as lágrimas. Porque essas precisam sair.





2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 10 de setembro de 2020

Prezada Amanda,

Andei ausente, mas quando leio suas crônicas - uau - é fortificante. Todos os seres vivos do Reino Animal lacrimejam como forma de lubrificação do sistema ocular, mas só nós outros, os humanos, choramos sem o estímulo da dor física. É ato da nossa consciência e da não-consciência, local que detém 80% das nossas emoções as quais não conseguimos penetrar de forma direta. Tem técnicas para isto, mas outro dia falo delas, envolvendo a Fase REM do Sono.

A Não-consciência detém toda a nossa memória de longo prazo - MLP, que é justamente a que nos faz chorar pelos extremos - alegria e tristeza, vida e luto (MLP é aquela que está na nossa imortal Alma), desde primórdios tempos.

Um objeto de estudo de Freud sobre a ontogênese e a filogênese teve o ônus de ter sido o primeiro a levantar estas percepções, mas a neurociência e a psicanálise a partir de Lacan não dispensaram críticas severas ao mestre. Ser primeiro, mostrar que há um caminho, é sempre mais penoso.

Muito prolixo aqui com as lágrimas. Vou parar por aqui. Um abraço

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 10 de Setembro de 2020

Caro Paulo,
Suas partilhas também são motivo para o meu choro...de contentamento e gratidão, nesse caso.
Sim, o Sr. Freud será sempre a figura que carregará o peso da vanguarda. Mas acho que ele já antevia essa posição e creio que não se importaria em ser centro de polêmicas.
Abraços,
Amanda