domingo, 30 de agosto de 2020

Devolva a minha confiança na palavra que não seja a minha

  Devolva o tempo que esperei até o futebol acabar na TV para, só então, a gente sair. Os meus primeiros e segundos tempos, os meus acréscimos regulamentares, as minhas prorrogações e penâltis.Tenha comigo o Fair play que o jogador do seu time teve quando isolou a bola ao ver o adversário no chão, se contorcendo de dor. Não vê que não é uma partida justa, se alguém não está em condições de jogo?
  Devolva o tempo em que a maca atravessava o campo e eu continuava no sofá, assistindo alguém ser socorrido, enquanto eu só despedaçava. Devolva os minutos dos comentaristas que dizem sempre as mesmas coisas em qualquer partida, como nós que partilhávamos dos mesmos equívocos em qualquer relação.

  Devolva os anos de estudo, quando eu lia os seus trabalhos, fazia suas resenhas, assistia às palestras para fazer companhia, aprendia um vocabulário do qual eu nunca precisarei.
  Devolva o tempo dos meus sonos despertados pela luz que atravessava a noite inteira, quando você tinha uma prova no dia seguinte. Devolva os sonhos que eu perdi, enquanto eu não dormia e os que eu deixei perdidos na fronha, quando eu me levantava antes de você para fazer o café.
  Devolva as minhas pálpebras claras, os meus olhos brilhantes e a saúde do meu sono, anos a fio perturbada.

  Devolva os meus minutos de espera em frente à porta do banheiro, pela manhã, quando eu o esperava tomar o banho para, só então, depois eu escovar os dentes. Devolva os muitos reflexos embaçados, porque só depois de anos eu me reconheço ao acordar.
  Devolva cada minuto interrompido da minha rotina para buscar a sua toalha esquecida no varal, procurar o seu chinelo, descascar o inhame para o seu suco matinal. Devolva as minhas gentilezas líricas e eu te entrego, para sempre, as suas estatísticas, as quais eu não saberei usar.
   Devolva as minhas horas gastas em procurar presentes para desconhecidos meus e não ter quem o fizesse, por você, quando a presenteada era eu.

   Devolva as horas dos almoços e jantares e jogos de futebol e idas ao clube e aos templos de deuses que nunca foram meus. Devolva a minha fé sem religião, a minha voz confiante e os meus desejos sem culpa.
  Devolva a minha solidez e a minha solidão atemporal; o meu instinto de bem vivência e as minhas mãos acostumadas à nada, por nada. Devolva a minha vontade de escrever, de não ter itinerário, não saber as horas aos finais de semana, o meu lugar preferido na cama, na calçada, na mesa e na história.

  Devolva os meus emaranhados de textos que não se limitavam à escrivaninha. Devolva os meus parágrafos de início, os meus fluxos de consciência, os meus títulos longos que antecedem qualquer texto, devolva as minhas margens não justificadas, meus heterônimos e a minha autoria, para eu usar quando me apetecer.
  Devolva a minha coragem de começar, mas, antes, a de acabar uma história. Devolva o meu não e o meu fim. Devolva a minha folha de papel em branco, os meus caminhos sem atalhos, a minha mochila desgastada e eu te entrego as suas listas detalhadas, com mapas de trajetos mais curtos.

  Devolva os números que eu disquei quando você não queria me atender, as mensagens que apagou sem ler, as centenas de conversas em que a minha voz nunca chegou, por mais urgente que fosse. Devolva os últimos minutos da minha ingenuidade e eu te devolvo as suas promessas.
  Devolva a minha inquietude sem par, os meus segredos etílicos, os erros que compartilhei com você, mas que depois você usou como arma branca, apontada para o meu peito.

  Devolva a minha confiança na palavra, naquela que não nasce em mim; não me deixe contorcer em campo até que o juiz pare o jogo. Só isole a bola e eu serei grata pelo gesto.
   Devolva a minha certeza nos mergulhos, nas improbabilidades, nas apostas sem experiências anteriores. Devolva o que eu te entreguei sem guardar um pouco para mim; porque agora eu quase não tenho mais nada.




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