quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Os próximos quarenta e cinco serão ainda melhores

   Ele entra no quarto, fecha a porta devagar e sussurra alguma coisa antes de abrir a sua bolsa e
procurar uma sacola. Agora eu sei que é uma sacola, mas até ele encontrá-la, fiquei em suspensão. Observando seu desacerto, a confusão das mãos e da bolsa ainda no ombro. É sempre um pouco desajeitado, mas a ansiedade por algum segredo que está na bolsa e prestes a compartilhar, atrapalhou um pouco mais a sua busca. Finalmente retira a sacola da bolsa e me entrega, está satisfeito e com pressa, mas antes da fuga, sentencia:
  - Guarda aí com você para ela não achar antes da hora.

A sacola é rosa e tem um laço vinho e as letras douradas de uma loja que eu nunca frequentei. Eu já sei o que é, mas me surpreende a discrição dele, tão inédita, tão juvenil aos setenta. Uma aventura na pandemia que ele mesmo se propôs.
  Mesmo sabendo do conteúdo, eu abro a sacola. Desfaço o laço, abro um papel de seda e encontro a caixa de veludo. Dentro da caixa, duas alianças de casamento. Esperava por uma, mas sou responsável pelo par agora. Tiro-as da caixa, experimento ambas, muito largas no meu dedo e confiro as inscrições das iniciais do casal do lado de dentro da aliança. Eu proporia colocar a data também, mas não cobrarei, se ele não se lembrou. Não importa.

  Há semanas ele me rodeia, pede que eu o ajude com as medidas do dedo anelar da companheira com quem compartilha a vida há mais de quarenta e cinco anos. Sabe tanto sobre ela, assistiu e fez parte de tantas mudanças, etapas, quedas e vitórias, mas a medida do dedo não é coisa comezinha. A última vez que ele precisou dessa informação, suspeito que tenha pedido a ela e há quase cinco décadas. Não foi surpresa daquela vez; foram à uma loja juntos e escolheram a que ela quis.
  Agora eu faço parte da história, ainda que sem protagonismo algum. Uso o truque de dar um anel meu para ela experimentar e ela parece não desconfiar. Dou a medida escondida para ele, que faz a encomenda sozinho - será um presente dele para ela. Não são tão raros os presentes dele, mas é incomum essa ansiedade, a empolgação e a logística toda do segredo. Ele que não é absolutamente romântico, quis dar a ela, de novo, uma aliança. Porque ele a conhece verdadeiramente, eu acho. 

  Há quase sete meses a perda aconteceu. Lavando as mãos, mais vezes e com mais intensidade com a qual estava acostumada, a aliança escapou do dedo, que parece mais fino nos últimos anos. Tentamos o resgate; já fizemos isso outras vezes com outros acessórios menos importantes. Um brinco, um dente, um anel barato, todos resgatados com sucesso. Até nos apartamentos vizinhos fizemos o mesmo trabalho. Ela é especialmente talentosa para recuperar esperanças. Mas agora a perda era dela e não saiu heroica dessa empreitada.
   Um arco dourado no ralo da pia, descendo um pouco mais a cada tentativa e ela tentando se consolar; pensando em perdas muito mais trágicas.
- Foi só uma aliança. Quando passar isso tudo, compro outra.

  Há meses ela está vazia. Há meses existe uma ausência a qual não se acostumou; sabe dar uma materialidade a ela, mas disfarça, porque acha que não é tempo desse sentimento. Há meses cultiva o hábito de massagear um dedo. O dedo vazio tem menos tempo do que ele preenchido. Imagina ter um anel no mesmo lugar há cinco décadas? 
  Eu já havia notado a sua melancolia e pensava em surpreendê-la no seu aniversário, que está próximo. Mas ele estava do outro lado da linha que partilham. Ele sempre está. Mesmo quando não percebemos.
  Foi ele quem tomou a iniciativa antes, ele guardou o segredo e pensou em todo o esquema da surpresa. Ele escolheu completar o vazio, dar a ela finalmente o seu romance de revista, em que lia Érico Veríssimo e histórias de amor.  

  Um par de alianças douradas - a dele precisou ganhar mais alguns milímetros, por isso está na caixa - que eu seguro como a minha própria história. Eu também materializo um sentimento. Este é um presente do qual eu não me esquecerei, como  o cartão - o único - que ele deu a ela, ao resolverem retomar o namoro depois de um pequeno desentendimento e pausa.

  O cartão em um papel branco comum, sem nenhum atrativo de flores ou corações, tinha a frase datilografada, na máquina que tivemos por muito tempo em casa: "Assim como a fumaça do tempo se esvai. Pensamos que o tempo passa, mas somos nós que passamos".
  Não passamos, pai. Nós ficamos. Em algum lugar nós permanecemos. Você talvez seja essa sacola rosa no meio da minha tarde de quinta-feira.


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