segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A universal casa cento e seis

   Há menos de um ano era outra coisa. Era uma casa de esquina, nessa rua estreita, com uma varanda abarrotada de inutilidades em ponto de serem descartadas, mas aguardando decisão. Violão quebrado, cadeira de palha sem o encosto, um quadro desbotado com a imagem melancólica de uma ponte rodeada de flores, uma bicicleta enferrujada, algumas formas de papel prateado, partes desencontradas do que parecia  um painel de festa infantil, pneus e garrafas pet e outras coisas que deixavam o cenário para além de feio, um risco sanitário.  
  Atrás da varanda desorganizada, a casa parecia diminuir a cada dia. Vi algumas vezes um casal de meia idade na casa, numa das janelas o homem, às vezes a mulher, abrindo o portão da garagem e vi o dia em que tomaram a decisão do descarte e também da partida.

  Com a varanda vazia, a casa finalmente aparecia. Era menos escura e maior do que sempre achei. Alguns dias depois da mudança e um homem já pintava as grades, as janelas e as muitas paredes da casa desnuda. Mas o surpreendente de ver outra coisa nascer, foi o tempo em que tudo se deu. Uma semana e a varanda parecia saída de um programa de TV, desses em que o dono ganha uma reforma muito rápida e nítida, o que nem sempre significa profunda. Mas surpreende quem compara o antes e o depois, tradicional desses programas.

  Na varanda de agora são duas cadeiras vermelhas e uma mesinha branca, debaixo de um guarda sol listrado. Um pedaço de grama sintética sob as cadeiras, um caminho entre a porta da entrada e o portão, cercado de pedras pintadas de branco, arranjos de flores artificiais na janela da sala, algumas almofadas ao lado da cadeira e da mesinha e mais flores e pedras brancas na subida para a outra varanda no segundo andar, no qual só é possível ver um guarda sol com a mesma estampa listrada. Imagino que lá se repita um pouco essa mesma estética de transformação acelerada. 
   As paredes também foram pintadas de vermelho. Tudo muito intenso ali. Uma mudança muito desesperada até.
  Há meses aquele par vazio de cadeiras, aquelas flores que nunca murcham, cujas folhas não caem e onde as abelhas não pousam. Decerto que parece mais limpa, mas é igualmente desabitada como a anterior. Ninguém se senta nas almofadas, ninguém usufrui do pedaço idílico na rua cada dia mais urbana. Ninguém.

  E ainda não houve chuva em que eu me lembrasse de assistir a logística de proteção do cenário erguido naquela varanda. Será que ao menos recolhem as almofadas? E as flores serão impermeáveis? Não é prático, tampouco frequentado e é só um quase bonito, porque soa falso, porque parece querer ser uma capa de revista e não uma varanda.
  Parece um lugar desesperado por felicidade ou alguém desesperado em ter um lugar pelo qual a felicidade se encantasse. Visse a mesa e as cadeiras, abrisse o portão, se sentasse para um café e talvez entrasse na casa e quisesse ficar. Uma armadilha, um esquema de captura de felicidade. A varanda é um chamado à felicidade que nunca chega, como se espera, à esquina estreita.

  Há meses a grama artificial perde o brilho, a cor vermelha da parede desbota um pouco, os guarda-sóis ficam mais tortos, a mesa branca é menos branca e as flores parecem mais empoeiradas. E ninguém chega, ninguém toma um café com a xícara apoiada na mesinha. A varanda é esse cenário triste de uma promessa que não foi cumprida.
   O descarte das coisas quebradas aconteceu, os antigos moradores desanimados e silenciosos partiram e nenhuma demão de tinta para cobrir a ausência de novidade.

   À casa cento e seis ainda não chegou a felicidade. Nem com decoração nem com esforço de beleza artificial. Queria ajudar a limpar um pouco esse desespero, tirar do caminho rodeado de pedras brancas as expectativas que só atravancam e talvez sugerir uma demão de tinta lilás ou verde água, que pudesse amenizar esse compromisso de trazer quem ainda não sabe o endereço.
  É diferente, mas permanece igualmente desajeitada a varanda da espera. Felicidade não enxerga paredes, não exige cadeira cativa, não se encanta pela fragilidade de uma grama sintética sob duas cadeiras e uma mesa.

  Felicidade não chega no depois, daquele programa de TV sobre reforma de casa. Talvez até venha fazer uma visita durante a transformação, segure uma bandeja de tinta, desdobre uma escada, procure um pano com tíner, ajude a esticar a grama, pinte duas ou três pedras de branco, ofereça água ou limonada e vá embora às seis. Mas não chega para se sentar na almofada nova; só porque é nova.
  Na varanda da casa cento e seis no antes e depois tem ausência, solidão e desejo de felicidade. Como qualquer casa, de qualquer número, de qualquer rua, em todos os mundos.
  Então se alguém, sozinho, se sentasse numa das cadeiras, tomasse em paz um café sem açúcar e com pouca espera, enquanto ouvisse Aretha Franklin, talvez a felicidade estivesse a servir esse café. 



2 comentários:

Bel disse...

Eita café do bão seria!

Amanda Machado disse...

Bora?! Chama a Mari e eu levo um copo com água.