quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Que a estreiteza da janela permita a memória de um brinde

  Mesmo que alguém a chame sussurrando, sem agudos, num timbre macio e preciso, mesmo que uma
mão morna se aproxime e toque o seu antebraço esquerdo, mesmo que a voz e a dona da mão prometa segurança, o medo não passa, a ausência não a abandona. 
  Mesmo que seja só um caminhão de mudança ordinário na rua, em uma semana com feriado na segunda-feira, mesmo que não falem nada sobre ela, que não a vejam, que não saibam dela, o pavor é a sua companhia mais persistente.
  Mesmo que o dia seja morno, as crianças sorriam para ela e os olhares sejam de condescendência e amorosidade; ainda há desconhecimento e solidão.
 
  Ela olha o caminhão, a rua, a semana lá fora, por uma fresta pequena da janela do quarto andar. 
  Não olha para o jardim, não espreme os olhos, relaxada, mergulhando num raio de sol. Ela espreita com olhos arregalados e dedos da mão fechados em punho tenso; defesa no escuro, ainda que seja dia iluminado.
  Mesmo que a chuva comece ou o sol esquente muito, mesmo que o clima não seja favorável, ela aparece todos os dias na janela; às vezes mais aberta, hoje muito estreita.
 
  Mesmo que os vizinhos ofereçam ajuda, que o porteiro avise à família quando ela desce sozinha no elevador, mesmo que todos saibam da sua memória cada dia mais distante; ela parece tentar explicar o que não sabe:
- É que eu...veja bem, eu...
  Mesmo que tenha lido tanto, que tenha feito da palavra o seu mergulho mais profundo, que tenha na estante de casa alguns exemplares com o seu nome na lombada, suas frases não são mais faróis, nem para si. A turbulência ela enfrenta com pedaços de orações, olhos de medo e mãos quase sempre em punhos fechados. 

  Os cabelos brancos quase não esvoaçam com o pouco vento que passa pela estreita fenda da janela. Do que tem medo a essa hora do dia, em casa e aparentemente segura? Por que não abre mais a vidraça? Por que não respira mais ar de liberdade? 
 Figura frágil e pequena nessa janela semicerrada, tem as mãos trêmulas e inábeis para abrir mais os próprios horizontes. 
  Ela esforça tanto o olhar naquela estreita passagem. Olhos de medo, olhos de quem não está segura nesse tempo da vida, nesse horário diurno, nesse prédio com portaria e câmeras. Por que não pode abrir a janela? Por que somente esse ínfimo de paisagem?
 
  Uma fresta de janela, o medo, o desconhecimento deste mundo. Mesmo que apontem a sua história  em retratos num álbum de fotografias, não se reconhece, pouco ou quase nada sabe de si. Não identifica o próprio rosto, os nomes que deu aos filhos, as faces dos netos que já levou à escola. 
  Mesmo que tome os remédios, que faça a hidroginástica, não sabe se equilibrar se não tiver uma mão que a segure. Todos os dias parece aprender a andar de bicicleta. Mas em uma progressão de tempo diferente. Caía menos nos primeiros dias.
  Mesmo que ela tenha o mesmo nome há oito décadas, mesmo que partilhe do mesmo sangue e mundo com um grupo de pessoas que a acolhem, ela está perdida. Parece sempre não saber como chegar do outro lado nem o porquê de ter que atravessar. 
 
  Mesmo que daqui o mar esteja calmo, para ela tem sido ondas inquietas e tempestades seguidas há meses. É uma naufraga que não desiste de buscar ondas melhores. Por isso é que quando ninguém vê, dá algumas voltas na chave, abre a porta sem deixar o cão sair, fecha, entra no elevador e chega até à portaria. Dali nunca deixaram ela passar, mas tenta, quer ir ver o mar.
  - É que...veja bem...eu...  
                                                     
  A janela é ela se despedindo um pouco por dia da própria história. Estreiteza que a sua mão não controla.
   As quedas da bicicleta são mais constantes e, por isso, quase não sai mais de casa. Às vezes acho que os olhos de terror são substituídos por um raio de alegria, porque sorri sem razão aparente. Talvez uma cena, qualquer cena que a lembre de quem é ou o que fez antes de estar num mar que quase não a deixa mais de pé. 
  Um nascimento, uma vitória, um beijo, um poema terminado, um olhar, um alguém que nunca mais viu, talvez um brinde. Um copo ordinário no ar ao encontro de outro copo ordinário, que volta para ela agora; e por um segundo a sua janela é muito mais larga do que essa estreiteza que ela vislumbra agora.



2 comentários:

Bel disse...

maravigold vc e suas escritas hein

Amanda Machado disse...

Maravigold é a sua presença...aqui e neste mundo! Sorte a nossa a sua chegada.