domingo, 4 de outubro de 2020

Que me desculpe o sábado, mas neste ano eu espero quase nada dele

 
  Para os sábados passados, eu guardava o meu sono alongado; permanecia mais tempo na cama, dissimulada de sono. Às vezes já desperta há muito, mas tentando voltar à última cena do sonho. Olhos semicerrados, um fio de clarão, partindo meu corpo ao meio; duas partes entregues ao colchão e ao tempo. 
  Para os sábados, eu guardava o café da manhã tardio, o sons do latido do cão, da euforia das crianças, chegando à casa da avó, dos baldes cheios de água das mãos da mulher na varanda ao lado, da rima do vendedor dos sequilhos, tudo isso lá fora, mas também aqui dentro, enquanto eu trocava os lençóis.
 
   Para os sábados, eu guardava os gomos de mexerica lentos à boca, o melão quase desmanchando na vasilha verde de louça ou as duas laranjas às quatro da tarde, em pé, na cozinha, com um canivete quase cego, abrindo as cascas. Eu guardava frutas na geladeira, lavava os sapatos e colocava-os na janela para secarem, passava abacate com mel nos cabelos e ouvia Maria Bethânia, aos sábados.

   Eu descansava do noticiário e não recebia e-mails ou mensagens de trabalho aos sábados. 
  Para uma parte do mundo eu deixava de existir e uma parte do mundo também não existia para mim, aos sábados, e eu gostava.
   Eu não consultava a agenda, o relógio, a previsão astral, tampouco a climática porque eu era a autora e a musa dos meus sábados. Nem chuva nem mercúrio retrógrado me conduziriam. 
  Chinelo de borracha, esquecido em algum cômodo, debaixo da mesa, talvez;  descalça o dia inteiro, eu passava os meus sábados. Regava as suculentas, molhava os pés e, enquanto esperava que secassem ao sol, antes de pisar no tapete, eu olhava a  rua.

  Eu esperava telefonemas, aos sábados, quando as vozes mais afetuosas podiam me encontrar desarmada. Nem sempre a que eu mais desejava ouvir chegava, mas confiava até o último minuto, antes de ser domingo. Sem ansiedade, só espera. Sem mágoa, quando não vinha; só saudade.
  Eu não esperava cartas, embora sempre visitasse a caixa de correios - nunca se sabe.  Mas eu relia as que eu tinha, quando eu buscava a justa palavra que eu queria no meu sábado. Eu ouvia uma música nova, experimentava um sabor diferente de sorvete e partia o cabelo para o outro lado. Ia ao cinema, mesmo que o filme não fosse lá bem o que eu queria. Mas ia pela tela refletida nos rostos desconhecidos dos vizinhos de fileira.

  Eu pintava as unhas e sonhava com algum lugar em que nunca estive no mundo, mas que planejava estar logo, para passar meu sábado. Eu sonhava com outros sábados, aos sábados. Eu inventava sábados, dentro do meu sábado inventado-vivido.
  Eu alimentava  o gato amarelo e a minha confiança torta, em mim e nos outros; numa esperança que parecia sempre muito próxima. E que, agora, parece ir um pouco e cada vez mais distante, mesmo aos sábados.
  Para os sábados, eu guardava as minhas lembranças de sábados muito remotos: o cigarro de chocolate, a bala de amendoim, o mocassim marrom da minha mãe, a franja da minha irmã, meu tênis com cadarço néon, o Roxim que mordeu o amigo do meu primo, a caixa de ferramentas do meu pai, o jogo de botão do meu irmão, a santa que chorava e a revista em quadrinhos que eu lia, depois do jantar.

 Aos sábados, eu queimava correspondências com números de documentos numa lata de tinta vazia, como fazia, antes, o meu pai na mesma lata ou cortava-as em pedaços minúsculos como ensinou a minha mãe. Mas das cartas pessoais eu nunca me desfiz num sábado, mesmo que as pessoas das cartas partissem aos sábados.
  Para os sábados, eu escolhia melhores roupas, melhores amigos, assentos mais macios e impulsos que me fizessem voar sem limites de dia seguinte - logo cedo.

  O que eu guardava para o sábado, eu gastava tudo nele. Sem poupar para o próximo, porque eu teria sempre mais para empenhar. Aos sábados, eu não economizava sábado. 
  Para os sábados eu guardei tanto e agora quase nada eu consigo esperar de volta; não agora, não nos últimos sábados em que as ruas voltam a se encher de vazios, carregando sacolas. 
  Que me desculpe o sábado, meu antigo dia favorito da semana, mas neste ano eu espero quase nada. Talvez só uma vacina que nos afaste desse torpor que se prolonga, sem expectativa próxima de cura.





2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 10 outubro 2020

Prezada Amanda
Poetisa/Escritora/Professora e sobretudo humana de grande esplendor.

Vivemos tempos feitos para nós outros, sem dúvida alguma. Esta carta é para dar-lhe um presente e salvar o o sábado.

Aqui você irá ouvir e ver seu presente - a amandíssima Lenna Bahule, nascida em Maputo - Moçambique e extraordinária cantora de Jazz. Coisa para fazer valer a pena viver para escutar:
https://www.youtube.com/watch?v=UUyknxSvazE

Um abraço (2020 tem sido uma grande travessia para mim, mas estamos aí!)

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 13 de outubro de 2020
Caro Paulo,
que carta bonita, que presente precioso e repleto de sensibilidade. Iluminou a minha noite de terça-feira. Que maravilhosa e potente intérprete dessa música que acho das mais bonitas do nosso cancioneiro. Gratíssima por trazê-la até aqui.

2020 é um divisor. E tudo que divide pode ser igualmente doloroso e transformador. Andiamo!