quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Alguém a quem dizer quando não se levanta

   Liguei e disse que não podia me levantar. Só.
Não disse mais nada, porque não sabia o que mais dizer. Não cumprimentei, não perguntei com quem falava, não inventei um assunto qualquer. 
  Do outro lado, não perguntou sobre o meu estado de saúde, sobre a âncora nos meus pés, sobre o polvo de trezentos tentáculos que me atava à cama, sobre os meus lençóis que se tornaram, de repente, areia movediça, tampouco algum motivo lógico para eu permanecer deitada às duas da tarde, numa terça-feira. Desligou o telefone, mas antes disse:
  - Já vou.

  Me arrependi segundos depois da única frase. Não se conta a alguém que não se levanta, se estiver com as pernas inteiras e com o café pronto numa garrafa na pia. Eu já tinha me levantado. Eu podia, sabia e já o tinha feito. 
  Agora ela atravessa a cidade e vem bater à porta de uma mentirosa. O que direi a ela sobre a minha condição?

  Por que não me pediu detalhes, antes de desligar o telefone e dar duas voltas de chave na porta? Por que não disse que eu deveria tentar tomar um banho e esperar passar essa brisa sem nome? Por que não sugeriu que eu ligasse a quem morasse mais perto? Por que não me indicou um chá ou uma série? Por que não aconselhou que eu meditasse, se não podia caminhar?
  Por que não me mandou um vídeo, uma foto, uma frase dessas que eu sei que ela salva no celular para encaminhar em dias aleatórios para quem ela acha que vai gostar de receber? 
  Por que confiou em uma frase tão absurda, incompleta e despropositada às três da tarde? Por que ainda vem? Por que me ouve, quando nem eu sei sobre o que anuncio?
  Por que não é mais surda ou sensata? Por que é entregue e solícita à uma abafada imobilidade? Por que nunca me manda ter alguma fé?
  Não sei. Mas vem e eu já me sinto culpada pela chamada estranha, pela frase enganadora e por essa sensação de fardo-amizade.

  Por quantos sentidos já atravessaram as nossas ruas? De quantos pedidos nossa relação é feita? Ou quantos silêncios partilhados nos sustentaram nas longas viagens? Quantas palavras desvairadas já nos mobilizaram? 
  Quantos nós tivemos que aprender a fazer, sem nunca termos ido a qualquer reunião de escoteiros, e outros tantos que desatamos ao longo de uma caminhada, que parece sempre feita de tropeços e errâncias de um lado, enquanto o outro lado ampara? Quantas casas com pedras sobre os números tivemos que ultrapassar para chegar ao céu da amarelinha? Quantas listas telefônicas e bulas de remédio tiveram que preencher nossas bibliotecas?
  Vai chegar e eu não saberei dizer com palavras, que embora eu esteja de pé, eu não me levantei hoje. Não temo o seu olhar, as suas dúvidas, mas lamento tê-la feito abandonar a sua casa para ouvir o que eu não posso.

  Chegou e eu estava fresca, corada, vestida com roupa passada e limpa e com o cabelo penteado, fui eu quem abriu a porta. Não estranhou, não perguntou sobre o telefonema nem frase. Não questionou sobre o meu tronco ereto e as duas pernas exatas, sem tremer.
  Não perguntou, não aconselhou, não me fez passar um batom vermelho nem pintar as unhas. Não colocou música, não abriu um vinho, não sugeriu janelas mais abertas. Pousou no meu sofá amarelo e pediu café. Alertei que o café estava ruim, porque adocei demais. Quando nem gosto de açúcar em nada. 
- É simples, fazemos outro.
  Pediu pó, filtro descartável e colocou a água para ferver. Eu lavei a louça do dia anterior e ela passou o café. Eu não sabia o que dizer e ela não parecia querer que eu dissesse. Tomamos café, comemos biscoitos e falamos sobre as amenidades que nos ligam sem esforço.

  Mas eu quis saber. Então perguntei porque ela veio.
  - Porque você já foi, quando eu não me levantei.
  Acabou o café e eu já estava muito longe da âncora, do polvo e da areia movediça. Foi um resgate sem gritos.
  Enquanto esse colo perpétuo descia as escadas, eu senti que por mais difícil que o dia estivesse, eu não precisava tentar me levantar tão sozinha. Que mesmo que eu me constrangesse, que eu me calasse, que errasse todos os verbos, ela me ouviria. Era um telefonema e eu reencontraria sempre o caminho do corredor.
 
  Ligou no dia seguinte, às nove, e perguntou como eu estava.
  - De pé, desde às oito.
  - Que bom. Se colocar muito açúcar no café, pode chamar. 
  - Chamo e também vou.




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