terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Falta muito para que isto acabe?

  Vai chover? O céu cinza é sempre um prenúncio de temporal ou pode não cair uma só gota e o céu avançar em um cinza seco? Fechei todas as janelas antes de sair? O tapete da sala eu o recolhi da varanda? Ainda dá tempo de ir caminhando ou é melhor pedir um carro no aplicativo? Os preços estarão mais altos pela instabilidade do clima ou mais baratos porque ainda não é hora do rush? Se eu for andando e começar a chover, em que altura da avenida eu estarei para me molhar? Esse sapato escorregaria em asfalto molhado? Alguém se preparou para essa chuva? Baseado em quê? No céu, na experiência de outros verões  ou na previsão meteorológica? Terei tempo de fechar as janelas, tirar o tapete da varanda, não escorregar no asfalto e assistir, de casa, a beleza da chuva de verão? E se não, me molhar pode não ser ruim? Se chove, se me molho e a casa também é afetada, saberei não reclamar?

  Há um limite para o sofrimento, para a alegria, para a dor, para o desejo, para as perdas ou para o amor? Existe uma fita métrica, balança ou trena subjetiva que avisa antes de transbordar ou simplesmente transborda? E quem é que recolhe o que não cabe? E depois que recolhe, faz o quê com as sobras, joga no lixo ou reaproveita?
   Há limite para a espera, para o perdão, para a crença naquele que te feriu? Ou a pergunta: vai ferir de novo? Será sempre um fantasma? 
  Há um limite determinado para a luta até a desistência ou o limite é o desejo de descanso? Se esperasse até o momento certo para o contragolpe, teria vencido ou só estaria agora derrotada e ainda mais cansada?
   Tentar mudar a ideia de alguém ou tentar se sentar do mesmo lado da janela  em que ela está? Ao menos por um segundo, o lugar na janela ou a tentativa de desvio. Acreditar no sexto sentido ou na primeira impressão? Sabemos quando acaba e insistimos ou acreditamos que acaba, porque não suportamos mais esperar que a hora do término se confirme? Para quantas pessoas mente? Para quantas quer dizer a verdade? Alguém a inspira a não ser só uma personagem?

 Forte ou fraco? Expresso ou no coador de tecido? Com ou sem açúcar? Com leite? O leite é desnatado ou integral? Vegetal ou animal? De pé, perto do batente de uma janela de madeira ao lado de um fogão de lenha ou sentado em uma mesa na cobertura de um restaurante no Centro?
  Xícara ou caneca? O pingado no copo americano, é só na padaria ou em casa você também tem o hábito dos copos americanos? Depois das seis da manhã e até às cinco da tarde ou desde que acorda e até antes de dormir? Cafeína é bom para pele e ruim para o sono; é bom para encher a xícara e ocupar os silêncios depois do almoço. 

  Tem mais medo hoje ou antigamente?  São maiores os seus medos ou os toma como proporcionais à experiência? Tem medo de envelhecer? Medo da morte? Medo da fealdade? Tem mais medo de que te queiram e você não ou mais que você queira e eles não? 
  Tem medo de ser abandonada ou de ter que ir embora? De fracassar em público ou ser um sucesso solitária? Tem medo do medo? Divide o seu medo ou o varre para debaixo de um tapete felpudo? O medo a paralisa ou a estimula a correr mais rápido? Já viu que o medo de alguém parece pequeno só porque não é seu? Já viu que o seu é grande até ter que atravessar a rua, o rio, a ponte? 

  Tiro a roupa ou deixo você tirar? Tiro a sua ou deixo você tirar? Dobra ou joga no chão? Estendo no varal ou você coloca na secadora? Tira a roupa quando chega em casa ou descansa primeiro, antes do banho? Passa as camisetas com ferro à vapor ou deixa que elas estiquem com o calor do corpo? Guarda muitas peças que não cabem mais por que acha que vão servir de novo, um dia, ou se esforça para guardar o que elas lembram sobre quem você foi e pode voltar a ser?
 Para quem você se veste? Para quem você se despe? As duas coisas são para mesma pessoa? Quem espera você se vestir? Quem não tem pressa para você se despir? Encontra isso em uma pessoa? Já encontrou?
 
  Ivermectina, Cloroquina, militância bélica, invenção de mitos alucinados; a que horas essa loucura nos deixará em paz? 
  Quem cultiva o ódio, quem aduba a mentira, quem planta a sua esperança em campos de destruição? Quem, ainda, não acordou do pesadelo que chamou de sonho? 
  Há saída? Para que lado ela fica, senão à esquerda? Quando o nosso sonho naufragou e você não fez nada, porque achou oportuna a vingança, não se importou de também perder? Nesse caso é melhor que ninguém ganhe ou que ninguém perca? Você ainda sabe do que estou falando?

  Vai chover? Vou ter que aprender a nadar ou basta um guarda-chuva? Posso te dar o que eu tenho ou é muito para você? Quer café? Quer carona no meu barco? Está com medo? Já tem roupa para o dia em que isso tudo acabará? Quanto tempo eu ainda aguento sem me incomodar demais com os pingos? 
  Falta muito para que isto acabe? Falta muito para que eu me esqueça do seu nome, rosto, voz e gestos? Falta muito para que eu volte a sonhar de novo com um país?


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, 11 de fevereiro deste inenarrável 21

Prezada Amanda
A maestra das quimeras inquisitórias

Da fealdade simbolicamente inserida no seu texto de encanto ímpar, ocorreu-me pensar em Narciso. Narciso não fazia perguntas - era muito orgulhoso e tinha uma arrogância que ninguém conseguia quebrar.

A ninfa Eco o amava incondicionalmente, mas o rapaz a menosprezava. Logo a Eco, que retorna todas as ligações. Eco o amava tanto que perdeu sua realidade, ficando somente a voz. E mesmo assim Narciso continuou com seu orgulho.

Deu-se que a deusa Némesis, para castigá-lo, o condenou a apaixonar-se pelo seu próprio reflexo na lagoa de Eco. Vaidoso, ficou encantado pela sua própria beleza e definhou, olhando-se na água e se sentindo perfeito, sem precisar das respostas.

Você trás esta tônica à superfície - a pergunta querendo respostas que não esvaziem a complexa vida que floresce diuturnamente em nós, afinal o que move o mundo são as perguntas, e se nos permitirmos, nossa Eco, lá dentro da alma, nos responde aquilo que já sabemos.

Lindo o seu texto! Sempre aprendo vindo aqui!!

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, onze de fevereiro do estranho 2021
Caro Paulo,
O mito de Narciso...que alegoria mais oportuna e tão contemporânea você trouxe aqui! Não havia pensado nela, mas como sempre você faz, incorpora novos sentidos ao que eu trago. Narciso - incapaz de se apaixonar por qualquer ser que não fosse à sua imagem e semelhança;o mito que não ouve qualquer voz que não seja a própria. Narciso que só concebe a sua existência como superior e primordial; vaidoso, soberbo e egoísta. Narciso que morre afogado na própria miséria, que é esta de não se permitir a conhecer o diferente.

Grata, Paulo! Pela leitura gentil, pela companhia sempre agradável e por tudo o que carrega consigo quando bate à porta.
Abraços e um feliz novo ciclo!
PS: Beijos nas meninas
Amanda Machado