sábado, 6 de fevereiro de 2021

Pela inevitável queda no infinito abismo

   Às vezes não nos lembramos de que é queda, mas esquecer não faz com que ela seja interrompida. Fazemos o café, lavamos o cabelo, deixamos cair um grampo no tapete do banheiro, desentupimos o ralo da pia da cozinha com as mãos, apagamos e acendemos as luzes todas da casa, beijamos o filho antes de dormir, xingamos alguém - mesmo que mentalmente - desejamos o melhor para quem amamos e um revés cruel do universo a quem não pudemos suportar - também em silêncio, sem nunca admitir publicamente, porque somos éticos, maduros e humanos decentes, aparentemente - vamos ao dentista, apalpamos a fruta no mercado e não a trazemos, dormimos com alguém e esticamos os nossos pés durante a madrugada para ter certeza da continuidade da companhia, ajudamos outro alguém com as instruções do caixa eletrônico e nos lembramos dos nossos pais; e isto tudo enquanto caímos.
 
  Não  interrompemos a queda, mas só nos lembramos dela eventualmente e nos enganamos que também é pontual essa perda de solo. Não é. Enquanto escrevo eu caio, enquanto você lê também.
  Não há chão. O que chamamos de solo é apenas a distração da queda e o que entendemos por queda é a consciência fugaz de que não há segurança em nada. Por isso estamos sempre caindo.
  O piso de uma casa é tão seguro quanto ao de um barco naufragado ou ao de um automóvel desgovernado. O que nos faz acreditar que é mais estável a casa é a velocidade lenta, quase sempre imperceptível, do seu desmantelamento. 
  Poucos sabem que caem, menos ainda são os que se apropriam da própria queda e inauguram uma liberdade. A poeta sabia que nunca parava de cair.  E caindo escreveu, caindo inventou um mundo de palavras que me habitam agora. 
 
  Quando a nômade  chegou à última cidade, já estava idosa, enxergava pouco, não viajava acompanhada de alguém com quem pudesse dividir o jantar, assistir ao telejornal noturno ou com quem discutisse pela louça suja na pia. Não tinha gatos, não tinha pratos na parede nem souvenirs, numa estante, em frente aos livros. Não tinha vestidos que não cabiam, não tinha uma gaveta com boletos, caixas de remédios quase vazias, botões perdidos de alguma roupa, arames de fechar pacotes de pão ou clipes de papel. 
  Não tinha registro de água que vazasse, não tinha a sorte de um amor tranquilo com sabor de fruta mordida, não tinha baldes rachados debaixo do tanque, não tinha uma coleção de discos de vinil nem uma cadeira confortável na varanda onde tomasse sol. 
  Tinha apenas a mala, o endereço de um hospital, uma cirurgia de catarata agendada, alguns poemas numa pasta de papelão e uma reserva num hotel na parte antiga do Centro. A poeta que sabia da queda, carregava pouca bagagem, porque o seu peso sempre foi outro.
 
  Continuamos caindo e embora ela pudesse fazer das palavras o que quisesse e, talvez, inventar um mundo onde encontrasse finalmente o chão, ela escolheu não se esquivar da inevitável queda. Agora, tinha um quarto de hotel, alguns poemas na mala, vidros de colírio, caixas  de analgésicos e curativos nos olhos, um de cada vez a cada quinze dias. Depois de um mês enxergava de novo e em todo o tempo se deslocava em queda.
  Enferma ocasional, poeta antiga, caía todos os dias ininterruptamente e só se fatigava quando não escrevia ou alguma gota do colírio manchava a página. À queda estava completamente habituada, se abaixava para acariciar a sua fronte macia, não evitava os pulos, as lambidas e os arranhões. Acostumada à queda, domesticado o medo; não sentia falta de chão.
 
  Porque não dói, como pode parecer; às vezes só nas primeiras horas da percepção do abismo. E chamamos de poço e choramos no travesseiro e trocamos a fronha e choramos de novo e desabafamos com alguém e culpamos os outros e  desabamos em frente ao espelho e cobrimos as olheiras com maquiagem; até esquecermos de novo da queda. Porque são poucos os poetas e muitos os atores.
  Despencar não dói, mas acreditar que antes tínhamos um chão e o perdemos, isso sim causa feridas. Não é que não sabemos flutuar, mas não nos conformamos em perder; mesmo que a posse seja uma narrativa falsa e individual.
 
  Depois do hotel, dos livros de poesia, do voo livre sem expectativa de solo. Depois das tardes sem o som dos latidos dos cães para os carteiros, sem o barulho das chaves, entre os dedos manchados de tinta azul de caneta barata,  para uma caixa de Correios e só encontrar um envelope do banco com um cartão de crédito novo; sentiu que o pulmão se tornava apertado. 
  Há muito sabia da queda, mas nunca tinha perdido o ar. Inspirava profundamente, mas só captava o insuficiente. E eu caía e ela se afogava sem ar.  
 
 Pelo chão que buscamos sem nunca encontrar. Pelo desejo da segurança impossível. Pela aceitação lírica da inevitável queda no abismo infinito; vou rezar esta noite. E morrer aos oitenta e oito sem nenhum poema engasgado, porque este é o regalo da vida para quem não a evita.

À Maria Lúcia Alvim




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