quinta-feira, 11 de março de 2021

Era para ser menos amargo esse café da xícara

     Era para ser um outro final de verão agora; muito diferente desse. Talvez estivéssemos bronzeados ou, quem sabe, um pouco menos pálidos. Talvez precisássemos hidratar o cabelo, de uma máscara facial de camomila e bepantol nos lábios castigados pelo sol. E mesmo que não fossemos à praia, teríamos um colorido temporário, uma tonalidade muito particular. Talvez tivéssemos fotos e histórias ou só histórias e uma playlist de verão com músicas da Gal e dos Beach Boys. Era para estarmos com uma sombra das tiras do chinelo de borracha impressos nos pés agora. Era para nos acostumarmos com o novo horário. Você se lembra quando atrasávamos o relógio em uma hora, antes do verão ir embora?
  Não era para ser roxo, para ser descorado, para ser reclusão ou desmazelo. Não era para lermos estatísticas, fazermos parte delas ou temermos que um dos nossos também virasse só um número no noticiário da noite. Não era, sabe? Não era.

  Era para escrevermos cartas sem destino, só com um destinatário imaginado ou um poema com qualquer metáfora sem estilo, mas terno. Deixaríamos os nossos textos numa gaveta e mesmo que ninguém nunca os lesse, teríamos sentido o prazer da palavra, o eco de um sentimento que só o papel abarca. Era para copiarmos trechos da letra de uma canção que nos lembrasse de alguém e enviarmos em mensagens que declarassem, sem pudor, nossos sentimentos. Era para fazermos sonetos, lermos versos, talvez num sarau ou admirando nossa própria voz, enquanto líamos na cama, esperando pelo sono.
  Não era para replicarmos as mesmas instruções de higiene há quase um ano, para sermos sugados pelas matérias dos jornais tão desesperadoras diariamente, numa vida assim sem poemas, sabe? Não era para essa curva alcançar índices tão brutais e continuarmos clicando em anúncios de roupas para ciclismo. Era para estarmos abismados agora, mas caímos todos; ou muito acostumados ou desistentes. Só caímos, mesmo quem não enxerga a queda também não escapa. 

  Era para combinarmos de sairmos no sábado, pela manhã, escolhermos uma mesa de madeira maciça que durasse a eternidade dos anos que achávamos que partilharíamos pela frente. Investir nosso dinheiro em uma mesa que fosse forte, no meio da cozinha; para refeições e conversas. Era para termos planos mais resistentes; que não nos prendessem, mas não nos deixassem tão soltos. 
  Não era para adiarmos tudo de novo para um próximo ano, porque a eternidade não cabe nesse nosso agora. Tenho medo que nunca mais volte a caber, entende? Tenho receio que a gente se adapte a uma vida sem sonhos de permanência e que a gente só flutue; não por liberdade, mas por falta de escolha. 

  Era para ganharmos a avenida nesses dias de sol; com alegria ou, no mínimo, com um tédio morno de uma quinta-feira em que nada de especial acontece, mas nada também nos aborrece ou preocupa. Não era para estarmos recolhidos e com esse medo de uma não-vida. 
  Era para sermos surpreendidos no meio de um passeio, na saída do supermercado, no ponto de ônibus, em frente à catedral por uma chuva, por uma tempestade que nos impelisse a dividirmos algum abrigo com desconhecidos; uma marquise mais larga, uma garagem sem portão ou o hall de um prédio no Centro. Todos de cabelos molhados, com roupas levemente transparentes, todos igualmente vulneráveis à natureza; mas não definitivamente vencidos.
  Não era para essa solidão sem precedentes nos roubar os dias, os planos, os sonhos, os pais, os avós, as ex-professoras, os vizinhos, a vontade de nos apresentarmos a alguém ou darmos conselhos a quem se sentasse angustiado ao nosso lado no transporte público. Não era para estarmos tão calados de medo e tão indisponíveis à escuta, por estarmos exaustos.

  Era para nos apaixonarmos ou estarmos dispostos a isso. Por uma pessoa, por uma ideia, por uma nova autora, por uma música, por uma história; um arrebatamento que nem precisaria ser romântico. Uma sensação de que a vida acontecia para nós, sabe? Alguma coisa no mundo passava a respirar junto de nós. Era para sentirmos que a nossa vida era uma grande obra, cuja autoria se dividia entre nós e àqueles que escolheríamos para a parceria criativa.
 Não era para estarmos desesperançosos, desconfiados, rejeitando os vínculos, os desafios, a imprevisibilidade dos começos. Não era para aceitarmos essa suspensão, esse tempo de sucessivos adiamentos para um tempo indefinido. 

  Era para festejarmos escandalosamente nossos aniversários, primeiros encontros, novas vidas, bodas, um emprego, a aprovação em uma seleção, uma primeira receita bem sucedida, o fim de uma angústia e as novas expectativas, entre abraços, suspiros e o calor de outras vidas contentes com a nossa. Era para ter taça de vinho, caneca de chopp e respiração próxima. Era para termos a dimensão da importância de uma pessoa, qualquer uma, a mais desconhecida e distante. E, depois, era para lamentarmos profundamente pelo seu desaparecimento.
  Não era para que os números grandes nos endurecesse; não era para falarmos do desaparecimento de duzentas e setenta mil e seiscentas e cinquenta e seis pessoas sem chorarmos. Não era para ficarmos menos cuidadosos a cada dia; só porque estamos cansados. Não era. 

  Era para eu perdoar, mas eu me esqueci de tudo e não sinto mais nada, nem sangro. Embora, talvez, ainda encontre uma cicatriz em algum lugar escondido. Era para tentar entender que as boas intenções também pertencem aos desequilibrados e que as ruins também alcançam os justos. Era para ser o tempo de comprar a tal mesa de madeira maciça, mas nem a cozinha temos agora. 
 Era para ser menos amargo esse café da xícara. Suportaremos até a derradeira gota ou jogaremos o restante na pia? Não era para termos que fazer essa escolha diariamente, era só o sonho de uma mesa que não acabasse facilmente, numa cozinha que eu nem sei se existirá ainda.




2 comentários:

Bel disse...

vamos dividir o café para ele ser menos amargo.

Amanda Machado disse...

Ahhhh...sim... Siempre, Clemê! Café contigo é doce!