domingo, 14 de março de 2021

Encherá de palavras o que era só vazio ofertado

   E, de uma vez por todas, sairá do armário, gaveta, vitrine, casa vazia, porão cheio de memórias desbotadas. Atravessará a ponte, irá ao outro lado da cama, a um novo mundo, transmutará de perspectiva, correrá ao encontro do desconhecido. 
  Lembrará que o céu nas tardes de inverno, enquanto o sol se põe, tem uma beleza melancólica e fantástica. Que o alaranjado só aparece em dias muito frios, por isso não lamentará quando a temperatura cair.
  Contemplará o infinito, o teto sobre a sua cabeça e, quem sabe um dia, o da capela Sistina. Assistirá à lua em todas as suas fases; tomará chuva e nunca juízo completo.
 
   Calçará suas botas de couro, para os dias de um tipo de luta, mas também usará chinelos de borracha, sapatos de verniz e saltos altos para os dias em que caminhar demandará conforto ou beleza. 
  Caminhará como quem dança, resiste, foge ou corre em socorro, mas não se acostumará com o andar de um autômato. Descalçará toda a arrogância, nascida do seu medo ou do aprendizado errado. Gostará da humildade, se aproximará dela e será profundamente acolhida - porque é o que ela faz sempre, como uma mãe ou avó.
  Espalhará o seu perfume fresco pelos corredores do prédio onde mora, pelas avenidas que atravessa diariamente, mas também seu grito, sua raiva, seu hino e oração. Odores e vozes ganharão seus espaços.

   Amará e não será amada. Amará na hora errada, a pessoa errada, mas nunca de maneira errada; porque não há erro nisso. Será amada e não amará em troca, porque não pode, porque não sabe, porque é assim. Será amada e amará, sem contrato e sem certeza alguma, e, por isso, será o maior amor do seu mundo.
  Amará a vida, a sua, a de quem já ama, a dos outros que nunca viu, mas não todos os dias. Aprenderá a respeitar a nuvem azul que cobrirá o seu humor por alguns períodos. Amará sua tristeza e solidão; amará sua alegria e comunhão. Amará sem ter fim e também com um fim. Amará com arrependimento e também gratidão. Amará; e isto nem sempre será o bastante para se sentir feliz.
 
  Conduzirá as luzes no breu dos outros e no próprio e não desistirá, mesmo que o vento apague-as sucessivas vezes; irá brilhante até o final da travessia.
  Abandonará crenças, ritos, igrejas, conventos, mestres e, ainda assim, acreditará em alguma deidade de cuidado e conforto. Negará três vezes alguma coisa ou alguém e na quarta, talvez mude de ideia, porque o tempo, às vezes, aprimora percepções.
  Rasgará ofícios, declarações de próprio punho, escrituras, certidões e alvarás, mas nunca abandonará a própria palavra. Fará dela a sua bandeira mais justa. Encherá de palavras o que era só vazio ofertado e, por isso, sentirá a generosidade que cabe num texto.

  Afogará seus guias, mas não o poder deles. Aprenderá o curso dos rios quando soltar o corpo e não resistir tanto. Na água, conhecerá o medo e a superação; o abandono e o acolhimento; o fundo e também a superfície. Mas jamais terá um só lugar que seja permanente. Aprenderá a nadar continuamente, até encontrar o outro lado da margem.
  Salvará seus poemas do fogo, seus gatos do envenenamento, suas ideias da coerção, seus filhos da fome, seus bens do plano do governo, mas às vezes perderá todos por não chegar a tempo. O fogo, o veneno, a violência, a desigualdade e a má política estão sempre à espreita.

  Não desistirá, mas também não se acostumará com o mínimo, com o pequeno, com o parco que oferecem como se fosse privilégio. Desejará o que merece, sem nem saber que merece. Recusará o que é menor que o merecido e ultrapassará a ferida, a fenda e a dor.
  Enganará o chefe, a amante, o estômago, a foto, a resposta, a biografia, mas não poderá se esconder do tempo. Implacável, invisível, mas definitivo. Pensará nele somente quando ele passar ou quando faltar  pouco para vivê-lo. O tempo, esse presente esquecido. 
 
  Fará filhos, plantará árvores e escreverá livros e, ainda assim,  não estará completa. Libertará sua voz do peito, suas antepassadas da memória escondida, seus amores das dúvidas, mas sempre estará presa a alguma ideia, sonho ou luta.
  Romperá com a mágoa, com as memórias ruins, com o desespero e a ausência inesperada de quem prometeu ficar para sempre. Chorará pelos seus mortos, pelas suas perdas, mas regará de lágrimas a vida que brota todos os dias, mesmo em solo arenoso.Viverá por dois minutos, trinta dias, algumas horas, duas décadas, meio século, um inteiro e ainda assim não terá vivido o bastante para entender coisa alguma. Encherá de palavras qualquer vazio e mesmo assim ele sempre a alcançará.


3 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas ainda que tardia, 15março 2021

Prezada maestra das letras e das palavras
Professora Amanda

Ouvi atentamente seu texto, ouvi porque o amor fala sempre quando é bem vindo. Que coisa linda, que natureza de Eva é esta? Eva nos deu o Livre Arbítrio.

Eva: Significa "a que vive", "a vivente", "a que tem vida" ou "cheia de vida". Assim, - "Amará e não será amada. Amará na hora errada, a pessoa errada, mas nunca de maneira errada; porque não há erro nisso." é coisa da mais fina quintessência feminina.

Seu texto é coisa de Eva! Apaixonante!

Um abraço

Paulo Abreu disse...

Em tempo,

Repliquei na Pitangueira esta inefável passagem completa de poesia:

Amará e não será amada. Amará na hora errada, a pessoa errada, mas nunca de maneira errada; porque não há erro nisso. Será amada e não amará em troca, porque não pode, porque não sabe, porque é assim. Será amada e amará, sem contrato e sem certeza alguma, e, por isso, será o maior amor do seu mundo.
Amará a vida, a sua, a de quem já ama, a dos outros que nunca viu, mas não todos os dias. Aprenderá a respeitar a nuvem azul que cobrirá o seu humor por alguns períodos. Amará sua tristeza e solidão; amará sua alegria e comunhão. Amará sem ter fim e também com um fim. Amará com arrependimento e também gratidão. Amará; e isto nem sempre será o bastante para se sentir feliz.

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 16 de Março (do inenarrável ano) de 2021

Querido Paulo,
sua presença aqui é sempre uma alegria! É bom receber visitas que nos trazem tão boas prosas...
Que bonita a lembrança de Eva, não sei se merecida, mas muito bem recebida. E é disso mesmo que precisamos mais do que nunca: Vida!

Em tempo: a prosa, transmutada em Poesia, no seu reino, foi uma grande homenagem. Gratíssima!

Abraços e uma excelente semana para nós! Andiamo!
Amanda