quarta-feira, 2 de junho de 2021

Não podemos falar de amor sem nos lembrarmos do fogo

  É uma cidade fria de novo e é o seu ombro de fora, querendo sol e afagos dos quais sente falta, mas sabe que não pode ter, porque era um preço alto demais que pagava para tê-los.
  É um junho intranquilo, em que as amigas estão em casa e você não sai há meses, mas ainda faz planos e escreve as saudades em lacônicas mensagens antes de dormir. Para que as palavras sejam o abraço, para que os lamentos sejam a sua declaração de amor.
  É o outono mais quente dos últimos anos e não compra meias de algodão há dois, mas sente um frio cortante horas antes de dormir e minutos depois de acordar.
 
  É um dia após o outro, como sempre foi, mas agora lateja. É a vida encontrando estranhos caminhos para seguir, porque embora pareça parada, nunca esteve.
  É o  vizinho voltando do hospital quinze quilos mais magro, vinte dias depois e com os olhos de terror, de quem escapa. É a sua filha, dezoito anos de amor, segurando a mão mais frágil e com os olhos de alegria porque houve a outra chance. E ela é agora.
 
  É maio despedaçado, é o aniversário comemorado por dentro, muito dentro que quase ninguém viu. É a carreira que não esperava em um mundo partido demais para qualquer um, imagine para alguém que sempre sentiu o mínimo abalo. Como lidar com os terremotos diários? Quão modificados ou não sairemos deste tempo? Como sobreviver ao irreversível? Como viver para ver o imprevisível? Quem tem coragem agora, quem resiste ou quem espera?
  É o seu cabelo cada vez menos escuro e os seus desejos cada vez mais claros, mesmo que cambiantes, você agora os assume.
 
  São os dentes tortos dele invadindo os seus sonhos, o hálito de Mentos enquanto ele fala, são as mãos dele ao volante e você infinita na estrada, enquanto ouve e Gnossienne, que também toca naquela casa da rua de baixo quando você passa. E não sabe o que a recorrência dessa música significa. Como também não sabe sobre o repetido sonho de sair sem máscara, que substituiu o da nudez onírica.
  Essa noite sonhou com uma cama beliche altíssima e o medo da queda, porque a transportavam com você em cima dela, de onde via a cidade inteira. Acorda e digita no Google "sonhar com cama beliche alta na rua".  Sonhar com cama significa vida feliz e saudável, diz o site. Sonhar com cama beliche, é a vida compartilhada, estar em cima da beliche,  segundo a pesquisa, é cuidar de alguém; cama ao ar livre, são experiências novas e reconhecimento no trabalho. Esqueceu de digitar "ver a cidade inteira do alto da cama". Foi a parte mais do bonita do seu sonho. Amou a cidade do alto de uma cama.

  É você consultando o significado de sonhos, depois de quase um ano sem se lembrar deles no dia seguinte. É você não lendo mais as previsões astrológicas, mas olhando para a lua enquanto toma banho e espera resultados que definirão cronogramas do semestre seguinte. É você agendando um futuro possível e sonhando com outro não programável.

  E teve aquele dia em que você disse ou escreveu para ele - as duas coisas são uma só, no fundo, e não importa - que você é quem havia acendido uma fogueira para ele e que também apagou sozinha. Não foi, estiveram juntos no fogo, em algum instante, mas enquanto você acendia, ele se distraía e quando você apagou, ele ainda ficou por algumas horas diante do fogo que não existia. Não podemos falar de amor sem nos lembrarmos do fogo. Não podemos falar de fim de amor sem nos lembramos do fim do fogo. 
  O hálito de Mentos e as mãos ao volante ainda voltam quando ouve Gnossienne, um dia se apagarão como o fogo.
 
  Amanhã é junho e não se encontrão mais e isso já não dói em lado algum. Continua produzindo fogo, sabe assisti-lo queimar, só ainda não aprendeu a dividir as labaredas com ninguém. A chaleira apita, comprou uma de presente de aniversário. Você também queria um aviso destes, emitir sons quando estiver a ponto de não aguentar mais o fogo. Você não avisa, não é? Não claramente.