quarta-feira, 26 de maio de 2021

O lugar em que lavar os pés já é o banho

  Um lugar para sentar-se confortavelmente, sem se preocupar com a postura, coluna ereta só se for costume, pernas cruzadas se não for para sentar-se como mocinha.
  Onde as palavras não são proibidas e os silêncios não são temidos. Onde lágrimas e sorrisos sejam contingentes, não precisem de cerimônias, porque são  parte da cartografia.
  O lugar em que dormir, no meio de uma conversa, sem a solução para um problema, não ofenda a ninguém e que a insônia não seja um motivo para os ansiolíticos, porque o despertar pode acontecer em outro tempo. Onde os sonhos atravessem a noite e nos ajudem a caminhar pelo dia.

 O único lugar em que lavar os pés já é o banho, porque a avó é menos exigente do que mãe e sabe que tudo o que precisamos é aproveitar o dia. A noite fria permite o lava pés sem atribulações.
   O lugar em que compreendam os seus medos e deixem a luz do corredor acesa. Que alguém ofereça a mão, o ombro, a escuta afetuosa; sem análises, sem respostas. 
  Um lugar que permita cartas longas e despedidas breves. Que não cobre entrada, mas não facilite a saída sem legados.

  O lugar em que o espelho nunca é inquisitivo, é só mais um reflexo possível entre os tantos. Às vezes mais amoroso, noutras nem tanto; mas que não seja a delimitação de uma perspectiva.
 O lugar em que o amor não é uma lista de concessões unilateral, uma fábula romântica até a meia-noite ou um fardo difícil de levar até ao outro lado. O lugar em que o amor seja canção, poesia, batatas descascadas na pia e roupa suja para lavar. E que também não morra sufocado dentro de alguns metros quadrados no Centro, mas seja livre e também liberte.
  O lugar em que os olhos não desviem da verdade, que os pés não desistam antes de conhecerem mais de um destino, que os ombros suportem até a chegada de ajuda ou que reconheçam serem mais fortes do que na partida. Um lugar onde os vulneráveis, os tristes, os sóbrios, as perdidas, as arrependidas, as ébrias, os desafinados, os deselegantes, as esquecidas, as errantes tenham vez.   

  Um lugar em que usar listras independa do biotipo, que as estampas florais se misturem com as geométricas sem os aprisionamentos dos censores estéticos. Que as fases da vida sejam individuais e não inspirem competição, que ser mãe aos vinte e ter uma profissão aos cinquenta ou o inverso não seja melhor ou pior. 
  Que os sotaques possam ser plurais, que as ideais encontrem um salão para a dança e que o ringue seja só para guardar as vassouras. O lugar em que os livros estejam em todos os cômodos - que inspirem resistência, partilhas e novas leituras - que as  músicas não incomodem os vizinhos e que a luz solar incida sobre qualquer ameaça de obscurantismo. Que os mantras, os provérbios, os versos sejam mais repetidos que as palavras de ordem.
 
  Um lugar onde etarismo, sexismo, racismo, fascismo e bolsonarismo não passem da porta. Que ninguém escute os seus chamados, até que desistam e vão embora. O lugar em que qualquer vida tenha muito valor e ninguém pense que exista alguma compensação quando ela é perdida.
  Um lugar em que as pessoas não morram, mas se tornem roseanamente encantadas. Que sejam líquidos os desconfortos e que sejam sólidos os afetos. Um lugar de lua redonda e grande, cujas noites sejam seguras e gentis. Em que a melancolia não seja medicada, expulsa, mas também não seja demasiadamente estimada.

 Um lugar com várias portas e janelas, chegadas e adeuses o quanto bastar. Uma gata, alguns livros, muitos papéis e a vontade de ir embora diariamente, mas escolher ficar. 
  O lugar em que  o sotaque do estrangeiro que mora a mais tempo nesse país do que naquele do qual veio, goste de ficar e se misture, junto com o seu espanto com aspectos da cultura a qual sempre será uma estranha; não porque nasceu em outra terra, mas porque nunca nos acostumamos a nada e fingimos. O estrangeiro é aqui e também no país do qual veio, um estranho.
 
  Um lugar em que solidão possa ser sem vista para o mar ou vista por ele, que venha em pequenas ondas constantes ou raríssimos tsunamis. Solitute continental ou marítima; mas sabida.
  Um lugar de voltas, que dispense a linha reta; que se alimente também de curvas, demoras e miopias eventuais.    
  Um lugar que nunca esteja pronto, mas que não seja precário ou vazio. O lugar em que lavar os pés é admitido como banho completo. Então é escovar os dentes, vestir o pijama e deixar a luz do corredor acesa até que o medo permita o sonho. O sonho é a coragem que não precisa de armadura; o sonho vencerá o medo.




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