domingo, 20 de junho de 2021

Que aqueça sem devastar, que ilumine sem ofuscar

  Se aproximam leves, não indiferentes, mas intocados pela pressa ao redor. Têm um ritmo íntimo, que embora deixem a vista, não partilham com mais ninguém. Não vêm ao meu encontro, mas é impossível não levá-los comigo. Têm, nos passos, uma mesma divisão sonora - que eu não escuto, mas imagino - são sincronizados e assim como as suas cabeças grisalhas, as mãos balançam para um mesmo lado juntas. Quanto tempo terão demorado neste ensaio? Quanto tempo para os dois corpos parecerem um? Sem música, sem marcações no chão, sem uma professora francesa, apontando as falhas. Quanto tempo para essa naturalidade coreografada? Será que sabem o que têm ou projetam? Ao menos olham as suas ritmadas sombras delineadas no asfalto ordinário?
  Não é número em um espetáculo de dança, eu não comprei ingressos, mas esse é o par que inaugura minhas esperanças diariamente.  
 
  Nos vemos pouco, em um relance por dia, às vezes dois, no máximo três encontros rápidos, se temos muito o que fazer fora das nossas casas. Moram no começo da rua, há menos tempo do que eu, mas há pelo menos uma década essa morada.
 Vieram para a cidade depois de o único filho se mudar para o Mato Grosso do Sul para exercer a medicina e já aposentados queriam uma cidade tranquila para viver. Vieram para minha rua e eu acho estranho, porque sonho em me aposentar e ir morar numa cidade tranquila também. Nos falamos pouco, trocamos cumprimentos rápidos - um sorriso e um bom dia sussurrado, quando eu via os lábios de ambos, agora é um adeusinho e os olhos espremidos, indicando os sorrisos sob as suas máscaras. Ela sorri mais, fala mais - foi por ela que eu soube do filho, da mudança, da busca por um lugar tranquilo - ele a acompanha, consente com a cabeça. Ela é quem conduz a dança e ele segue sempre o passo. Não erram nuca, ao menos quando estão sob os meus olhos.

  Caminham todos os dias pela manhã - é esse o nosso encontro diário - quando estou a um quarto do caminho de casa, eles estão no mesmo um quarto, mas afastando-se dela. Têm um biotipo parecido, são delgados, médios e em forma; imagino que sejam sexagenários, têm os cabelos grisalhos e corte quase idêntico, talvez cortem em casa, com o mesmo pente da máquina. Já vi muitos casais que se parecem, dizem que a convivência longa possibilita essa maior semelhança, mas o que me surpreende são os gestos sincronizados deles - isso sim parece mais raro. Não há tropeços, pesos aparentes, flutuam sob a névoa de frio e não usam tantos agasalhos. Se aquecem sei lá como.

  Faz muito frio em junho nessa cidade escolhida por eles. É gelada e cinza pela manhã e eles sorriem quando passam por mim. Eu saio, nos últimos dias, especialmente em busca de um pouco de sol. O gris e a umidade parecem atiçar a melancolia. Vou atrás de luz e calor. Encontro ambos aparentemente já aquecidos e um cão muito agitado, cuja dona que usa um pijama, debaixo do sobretudo de lã, ainda não está tão desperta quanto o seu companheiro de caminhada. Ele parece feliz, ela nem tanto.
  Aos domingos somos nós cinco e outros transeuntes ocasionais. Hoje, em frente ao bar, dois homens bebiam e uma senhora, que parecia ser a mãe de um deles insistia para que ele fosse para casa. Os dois de regata e a senhora enrolada em uma malha de lã também pareciam aquecidos por algo; talvez eles álcool e ela, pelo esforço materno.
 
  Que passos leves em tempos tão duros. Que beleza inusitada em figurinos tão singelos: o moletom dele é fluido e azul, a calça legging dela brilha em lilás.
  O casal enrosca as mãos e vira a esquina, depois de me oferecer sorriso e essa esperança diária de que há algum calor, depois da melancolia. Já pensei sim se não é uma idealização romântica de um casal como qualquer outro, com as suas dúvidas, seus acidentes, fúrias, cortes de cabelo que não dão certo e culpam o outro que guardou o pente da máquina com restos de cabelo, as discordâncias sobre a educação do filho e a cidade que escolheriam para viver; é também idealização. Mas talvez não só.
 
  Eu preciso do sol, um pouco por dia; o cão precisa da guia e das mãos nervosas da sua dona recém-desperta. Os homens na calçada do bar carecem de copo; o filho precisa do amor dedicado da mãe e ela da ilusão de ainda tê-lo. Mas o casal precisa de menos; mas de um menos que parece delicadamente construído. Basta o toque das mãos agora. Mas imagino que tenha custado muito até chegarem nesse instante.
 Estamos todos dependentes de algo que nos aqueça sem queimar. A chama fraca não dura, a muito forte pode incendiar e não chegar a aquecer. A medida do calor é um mistério profundo para mim.  Sorte é a de quem encontra a medida depois de não desistir e não a perde.

  Eu estive com frio até sair em busca do sol. Eu estive melancólica até assistir ao que aquece sem devastar. Esse raio amarelo claro, alisando os pelos do meu braço não é uma projeção romântica. Única certeza. Estar certa também não me deixa mais aquecida. Ter dúvidas nunca me deixou com frio.



2 comentários:

Lulupisces disse...


"Ter dúvidas nunca me deixou com frio". Que frase magistral! Pode ser o título do seu novo livro, né, confrade?
Aqui é Luciana Assunção, que também lançou livro de crônicas com a Karla: As Desventuras de uma mulher que levou um susto e sobreviveu".
Não conhecia seu blog, apenas o seu livro. Parabéns!
Convido você para passear lá nas minhas sandices, eu que também pareço ou sou mesmo muito louca:
lulupisces.blogspot.com

Abreijos fraternos!

Amanda Machado disse...

Obrigada pela visita, confrade!
Amei o título do seu livro. Já temos muito em comum: a queridíssima Karla, a Confraria, a escrita e os blogs. Vou adorar conhecer o seu...
Grata pela visita e leitura gentil.
Beijos!