quarta-feira, 7 de julho de 2021

A noite mais fria é aquela em que se tem razão

  Na noite mais fria do ano não há bebida que esquente a voz; chá preto, conhaque, aguardente, nada é capaz de diluir o gelo atravessado na garganta. Cantar já não adianta, fazer exercícios vocais tampouco. Nem dó nem ré, nem mi nem fá, nem sol nem lá, nem si. 
  Na noite mais fria de um ano, não há sussurro, gritos ou canção; à noite, só silêncio e solidão. Até os cães estão recolhidos do frio, os bêbados tremem as mandíbulas nas portas das suas casas, esperando que alguém abra e as crianças dormem enroladas em seus cobertores.

  Na noite mais fria nada começa, mas também não termina, porque é só infinitude de tempo. Na noite mais fria, a história parece contínua e nada é mais urgente que o frio da noite. Parece longa, porque ninguém interrompe a madrugada. Não há sono nem sonho que alcance alguém na noite de frio.
  Na noite mais fria o cruzeiro do sul não é visto, a neblina encobre o céu e a beleza do firmamento brilhante precisa ser lembrada. Na noite mais fria, só a memória aquece um pouco.
 
  Na noite mais fria as mãos não esquentam e os pés ficam dormentes, parados, sem escolhas de direção ou caminho. A noite mais fria entorpece o caminhante. O frio da noite mais fria isola-nos do mundo num mesmo tempo que nos coloca mais próximos a ele. 
  O frio da noite é a razão que pousa delicadamente em uma esperança e a congela, mesmo que provisoriamente. Na noite mais fria há desolação e medo. A coragem está trancada do outro lado da porta e não há resgate esta noite. O sonhos se quebram e as ilusões viram cubos de gelo em um copo sem uísque ou qualquer outra coisa que arrebente o isolamento.

  Na noite mais fria não há casaco que sustente a temperatura de um corpo, aquecedor que alcance o frio mais profundo, não há paredes que protejam da vulnerabilidade de uma constatação glacial. O frio da noite não vem de fora, ele nasce e morre dentro.
 Os abraços também não chegam na noite mais fria, às vezes dias depois nos encontram ainda abaladas, mas já não é noite e as nossas mãos não estão mais geladas.
 A noite mais fria não nos permite afetos, negligencia os nossos desejos e nos coloca desnudas das fantasias que exibíamos alegres durante o dia. A noite mais fria é um bloco de gelo que nos cai sobre a cabeça inesperadamente.

  Na noite mais fria o mistério é apresentado, abre-se as cortinas; mas a trilha sonora não ameniza a descoberta. Espectadora solitária da própria consciência. Era melhor ter vendido os ingressos, mas se não viesse não saberia.
  No frio da noite mais gelada as asas não batem, os sinos não tocam, os hibiscos estão congelados. Beleza só depois das seis, a noite fria é inteira densa de neblina, breu e verdade gelada. 
  Na noite mais fria a constatação de que ninguém virá ou se vier, não é quem desejávamos que chegasse. A porta não bate, o cadeado não abre, a cama é um deserto que precisa ser vencido. A travessia da noite mais fria é árida e úmida; é solitária e dura.
 
   - Crescer dói. 
   O pediatra disse, mas eu nunca senti.
  - Vão doer os ossos dela, mãe.
   Nunca soube se não doeram ou se eu é que era insensível a dor do crescimento. 
 
  Na noite mais fria desistimos das revoluções, desiludimos com as promessas, rompemos com os sonhos de um outro mundo possível. A noite mais fria é aquela em que se tem razão, quando preferíamos não ter. 
  Faz muito frio na noite mais fria; chega a doer os ossos o frio da noite mais fria. É como crescer. Não doeu antes, mas na noite fria a dor é inevitável. O frio liberta. Ser livre também dói, mãe. O pediatra não disse, mas agora eu sei.



4 comentários:

Keila Lima disse...

Quando preferíamos não ter.

Já tive algumas noites mais frias, desde 2016.
Tem sido duro, Amanda.

Amanda Machado disse...

E passaremos por cada uma delas, Keila! Espero.

Paulo Abreu disse...

Ser livre também dói!!!!

É isto aí!

Amanda Machado disse...

Também, Paulo. Que contradição!