quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Eram mulheres nas janelas da cidade

  Em Zanzibar, as mulheres são desencorajadas a aprenderem a nadar. Não moro em Zanzibar, mas também não sei nadar ainda. Talvez aprenda nesse verão; desejo recorrente de outros e talvez dos que virão.
  Enquanto não nado, corro. Visto a roupa de corrida, coloco os tênis e penso se fui desencorajada a correr. Acho que nunca. Talvez tenha sido desafiada e por isso continuo. Há mais de dez anos o mesmo itinerário. Na avenida de apartamentos, comecei a correr porque achei que era invisível. Ninguém sabia o meu nome e isso pareceu bastar.
 
  Mas agora não. Muitos sabem da minha constância e alguns já me chamam pelo meu nome, mas em Zanzibar as mulheres só aprendem a nadar quando adultas e usam garrafas pet para não afundarem no início.

  Nas janelas da avenida de corrida, antes, eram só mulheres a testemunharem os passos umas das outras. Nunca apareciam olhos masculinos entre as frestas de persianas, nenhuma silhueta máscula sob as cortinas de voal, nenhum braço peludo esticado para limpar as vidraças. 
  Eram sempre mulheres a perscrutarem os passos das outras, a caminharem comigo, a olharem para o céu, depois de um relâmpago e a desejarem entregar seus corpos a algum mar como as mulheres de Zanzibar.

  Mas agora nas janelas, também, vejo homens. Não tão acostumados às frestas, não tão à vontade ao serem percebidos. Alguns fogem rápido, quando vistos, outros se abaixam e voltam com o celular — disfarce para a livre contemplação — mas até agora, só um deixou o corpo vulnerável na soleira da janela. Ele é mais velho e parece, agora, menos comprometido com a imagem de alguém sempre ativo e dedicado a alguma urgência laboral.
 Que se apropriem mais do que está sob a suas vistas,  que se incomodem menos em também serem vistos. Que entreguem suas tiranias escada abaixo, que deixem que as suas virilidades sejam atravessadas por persianas. Que prometam menos o céu e que também partilhem das perspectivas das próprias janelas; que também as lavem, esfreguem, que passem folhas de jornal para tirarem manchas dos vidros. 
 
  Talvez sejam homens, aprendendo a olhar a cidade; de um novo jeito. Talvez sejam homens, aprendendo a serem homens de um outro jeito.

  Em Zanzibar, as mulheres são desencorajadas a aprenderem a nadar. Na escola da minha infância, minha colega carioca e bailarina era repreendida sempre que andasse pelos corredores em meia-ponta. Dona Mirtes,  a diretora,  e Dona Miltes, a professora, não permitiam que Silvana andasse como quisesse, mas ela resistia e eu gostava mais dela por isso até, do que pelo balé. Diretora e professora não se incomodavam tanto com as corridas dos meninos, quanto com a marcha suave da bailarina. Em Zanzibar usam garrafas pet, na minha escola tínhamos as pilastras. Na avenida, não tenho nada.

   Silvana desafiava nos corredores da escola, aos nove anos, e as zanzibaritas aprendem a nadar mesmo depois de adultas. Em Zanzibar há de mudar. No meu prédio, eu sempre rebolei pelos corredores e ainda não há reclamações no condomínio. Nas escolas que eu frequento eu nunca ensino como as meninas devem andar. Prefiro que elas escolham o melhor jeito.
  Mulheres sobem rampas do planalto, mulheres falam, escrevem, cantam e se fazem ouvidas. Mulheres desafiam, correm, aprendem a nadar e também limpam suas janelas, alimentam seus afetos; mas não todas e isso Silvana também deve saber. Eram mulheres nas janelas da cidade, agora estão em outros lugares, além das fendas domésticas. Mulheres voam, mesmo quando correm ou nadam.

 

5 comentários:

John disse...

Excelente texto, abrindo 2023 em grande estilo.

Amanda Machado disse...

Aaaa...mas muito grata, jovem gentil!! Inaugurando mais um novo ano...Não sei se com um excelente texto, mas com desejos e esperanças renovadas.

Amanda Machado disse...

E...excelentes álbuns! Grata por isto também. rs

John disse...

Só os indico, não produzo nada como você...rs

Amanda Machado disse...

Indicar é também um grande talento...