quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Vontade de amanhecer, antes da noite acabar

  Vontade de nascer em outro país, ter outro nome, outra história. De acordar em uma geografia diferente desta, ir caminhar com os cães, comprar leite e grãos, cumprimentar vizinhos em outro idioma. Ter outra árvore genealógica, outros prognósticos hereditários, aflições que não sejam verde-amarelas.  Hospedar desconhecidos, desarmada e pacífica, nunca trancar as portas, tomar chá todas as noites antes de dormir e banhos de rio, no verão.
  Desejo de conhecer mais o meu país e encontrar outros, aos quais eu não conheço. Falar a minha língua e, às vezes, não ser completamente compreendida, aprender ditados populares novos, beber com imprudência o álcool de cada terra e só ter como consequências dor de cabeça e estômago ruim, no dia seguinte. Abrir a minha janela muitas vezes, cada dia para uma nova paisagem. Ter esperanças verde-bandeira.

  Vontade de cruzar o oceano, de ver o que tem depois dele, falar a língua do mar. Bombordo e estibordo, proa e popa. Limpar o chão, o porão, os peixes. Descascar batatas. Contrariar ordens, puxar brindes e fazer longos discursos emocionados, enquanto não morremos. Comandar o navio ou ser levada por ele até onde as ondas permitirem.
   Desejo de me fixar num continente, nascer e morrer numa vila. Saber todos os nomes e sobrenomes que passarem pelo meu portão; deixar que saibam onde sempre me encontrar. Ser previsível, constante e fiel, mas também indomável.

 Vontade de silêncio, de nunca mais falar nada, ser completamente inacessível, para sempre ou por duas horas. Não saberem o que penso, o que sinto, o que eu sei ou desconheço. Manter a minha curiosidade adormecida. Não responder a nada, não elaborar questão alguma a respeito de nada. Não me referir a nenhum acontecimento nem a ninguém. Ser estátua de semblante plácido e completamente ausente de melodias humanas, sem dentes que se batem, sem ruídos digestivos, sem sobressaltos cardíacos.
  Desejo de ligar para alguém ao acordar e contar o sonho da noite, de me atrasar para o trabalho, porque perdi a hora, conversando enquanto tomava o café da manhã. Cantar no chuveiro, assobiar no elevador, puxar conversa com desconhecidos e não ter um minuto de águas calmas no meu lago; só jogar muitas pedras. Pisar em poças, arrastar a sola do sapato, enquanto ando em um corredor silencioso e longo, batucar na mesa, chacoalhar o molho de chaves, enquanto espero, arranhar o fundo do prato com o talher, no jantar; ser insuportavelmente barulhenta.
 
  Vontade de cortar o cabelo ou deixá-lo crescer mais. De pintar ou reconhecer a cor natural das mechas. Testar químicas e ter outra textura e volume, ao menos temporariamente. Experimentar tratamentos naturais, ampolas, polpas, folhas ou raízes de plantas. Fazer trança, escovar cem vezes antes de dormir. 
Ir à academia e trabalhar para que os músculos cresçam visivelmente, me submeter à fita métrica, ao medidor de gordura, à balança, aos olhares especializados e aprender sobre jejum e dietas.
  Desejo de  me reconhecer num espelho e saber ver além. Os joelhos, que mesmo inchados, já não doem, as muitas cicatrizes nos pés que seguem corajosos. As mãos cujos dedos não aprenderam a executar uma bela canção no piano, mas já viraram milhares de páginas dos muitos livros que as encontraram.  O sorriso, que é o mesmo há mais de três décadas, mesmo que ninguém mais possa reconhecer a semelhança; e a tristeza, que nem sempre é refletida.  Amar o que vejo sem sugerir reparos, investimentos ou análises.

  Vontade de escrever haicais, frases curtas, versos simples, poemas de uma só palavra. Uma poesia que ocupe menos de meia página e cujo título seja uma monossílaba tão potente e única quanto o próprio poema. Uma palavra-poema que atravesse uma pessoa num minuto.
  Desejo de elaborar frases longas, um período com dezenas de orações, que ao final de um parágrafo o leitor precise retomar o seu início, porque já é esquecido. Muitas e muitas frases indispensáveis para que a narrativa exista completa. De publicar uma tetralogia, mil e quinhentas páginas cada livro, para que só leiam os muito teimosos ou desenganados desta vida.

  Vontade de manter um tempo, subir no tempo, abraçar o tempo e não deixá-lo passar. De morar nele e não atender à porta, não atender aos telefonemas nem às palmas, debaixo da janela. Mantê-lo em cárcere privado, mas cheio de regalias para que não se apavore ou ameace choro com soluço. Fechar todas as frestas para que ele, caso torne-se gasoso, não encontre uma nuvem. Segurar o tempo com as duas mãos e não deixá-lo escorrer por entre os dedos.
  Desejo de apagar muitas memórias, correr daqui, fugir daqui, nunca mais visitar aqui. Pular as casas, avançar no tabuleiro, sem esperar a vez de jogar os dados. Colecionar planos e perspectivas que catapultem por cima dos portões das fortalezas; abandonar as âncoras. Contar somente as semanas, meses e anos;  deixar que os outros deem conta dos minutos, horas e dias. Só levar o essencial, colocar nas latas de lixo o que pesa, obstrui ou desencoraja.

  Desejo de esperar pelo outro dia, acordada, alerta e precisa, para dobrar as colchas, esticar os lençóis e começar outra coisa, antes mesmo de sair do quarto. Vontade de amanhecer, antes da noite acabar. De atravessar a escuridão, a melancolia, a desilusão e o medo para reencontrar a luz, o riso, os sonhos e o destemor ancestral, que alguém já ensinou e como má aluna, não dei a devida atenção, mas sei superficialmente sobre o assunto e isso parece ser o suficiente para uma tentativa.
  Vontade de atravessar a rua, descascar mexerica, subir discretamente no carrinho de compras por alguns metros, tomar um pouco de chuva, escolher um pó de café no supermercado, ver os peixes no aquário do restaurante japonês e consertar a bicicleta vermelha que ninguém mais usou. Desejo de escalar o Everest ou comer o bolo de fubá da minha mãe. Vontade de decretar um sábado de mil novecentos e oitenta e nove em uma quarta-feira de dois mil e vinte e três.




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