Me trouxe uma santa e eu não disse que não era religiosa ou que colecionava um outro. Preferi a delicadeza do silêncio. Guardei-a em lugar de fácil visão, rodeada dos franciscos que eu já reunia. Deixa-a feminina, translúcida e só, entre os monges de túnicas marrons e pássaros nos ombros.
É santa, logo se vê; embora esculpida em produção de larga escala, bem pouco cuidada, tem os traços divinos de sobrancelhas caídas e olhos marejados.
Agora converso com ela...peço conselhos, como a uma amiga. Me sinto bem pequena quando o faço, mas às vezes só compartilho questões e já me sinto à altura de adulta. Chamo-a Santa Minha. É o que ela é. Não há segredo entre nós. Mesmo que eu quisesse ela pode ver além; ela é o que eu não posso.
Já levei ao seu conhecimento unha encravada e um pé inchado da inflamação, um coração apertado, outro meio quebrado — nenhum partido de verdade — e um, mais recente, descompassado.
— Conheci um cardiologista esses dias, na rua. Conheci na vida, sabe? Sem consultório e exames. Fica ruim pedir que ausculte o ritmo?
Nada falou. Mas bem sei que fica sim. A Santa Minha é muito sensata, pelo olhar já me diz. Farei o certo e agendarei com um profissional.
Levei também terçol no olho, pelo qual roguei cura em dois dias; antes de uma apresentação no trabalho. O terçol melhorou no quarto dia, mas no segundo pouco se via. Levei cólicas, dores de cabeça e unhas fracas. Levei enjoo quando via na TV uma figura repulsiva. Não tratou da ânsia, mas ajudou com o desaparecimento do sujeito; eu acho. Levei gastroenterite, Covid e suspeita de dengue. Em cada um desses eu me mediquei, mas também requisitei a intervenção sagrada. Não custa nada e a Santa Minha parece não ter outras urgências que não sejam as minhas. Mesmo assim eu não a ocupo só com pedidos; faço confissões, dou risadas, canto alguns hinos da época em que eu era atualizada do repertório religioso e canto músicas profanas também. Santa Minha acompanha mais do que protege.
Já levei dúvidas profissionais, dificuldades financeiras e a briga com uma amiga antiga.
— Estou errada, Minha Santa?
Para ela, quase nunca estou. Não poderia ter interlocutora mais benevolente. Levei a minha angústia, os dias que as palavras não saem e embora ela não me responda, me sinto perdoada.
— Queria jorrar palavras, sabe? Como uma fonte de jardim. Queria que não me faltassem nunca.
Ela sabe.
Levei fracassos — milhares— e comemoramos alguns sucessos, os quais conto para ela antes de qualquer outra pessoa, porque é disponível, é generosa e santa.
Levei algumas inseguranças, incensos de lavanda, taças de vinho e xícaras de chá. Levei culpa, bebi culpa, fui exorcizada da culpa e ganhei compaixão.
Já levei cansaço, talvez mais vezes do que o normal no ano recém começado. Já pedi paciência, calma e agradeci a coragem. Já pedi conselhos amorosos, capilares e de vestuário. Mas santas não se envolvem romanticamente, não têm frizz nos fios e tampouco sucumbem à moda. Logo, tudo o que ela fez foi me ouvir e eu entender que concorda. Não é para mim, não vou cortar muito e a pantalona lisa é mais elegante que a estampada, para hoje.
Mas há um assunto do qual não falo; é o único tabu entre nós duas: maternidade. É um assunto recorrente para ambas e a Pietá é a imagem mais cortante que eu conheço.
— Passemos para outro assunto, Minha Santa.
Ele me deu uma santa quando há muito eu não rezava. Sem saber do meu passado
carola mirim, com cada mistério do terço na ponta da língua. Me deu a santa quando eu cismava de desacreditar em mim. Me deu a santa, aparentemente, a propósito de nada e eu, por polidez, não disse que não.
Integrei a santa aos chicos e a um buda dourado bem discreto, que permanece há anos em estado de meditação plena na minha prateleira, ao lado de alguns livros.
Gesso. Minha santa é feita de material vulnerável e barato; no meio dos chicos de madeira ela parece ainda mais frágil. Sou cuidadosa e talvez ela permaneça observadora por muitos anos.
Agora, mesmo quando não estou em casa, recorro à Minha Santa. O que eu faria se fosse santa? O que eu faria não sendo? A santa ilumina as minhas reflexões, enche de espírito humano o que eu tento racionalizar na ponta de um grafite ou na tela do celular. Santa Minha não é inquebrável, mas não morre.
Perguntou-me da Santa-presente, dia desses.
—Esplêndida, como dá. No altar que conseguiu para si.
Respondi. Sobre mim.
Respondi. Sobre mim.
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