No alto da página, escreva o nome da cidade de origem da carta; em seguida, coloque a data em que foi escrita. É importante situar o destinatário; você pode querer citar um assunto, que talvez, quando a carta chegue já esteja resolvido ou tenha acontecido algum desenrolar entre a escrita, o envio, o recebimento e a leitura. É interessante que o leitor também saiba a distância geográfica dessa voz.
Sim, o processo é mais longo. Logo, que não seja nenhuma questão urgente. As cartas são lentas. Uma missiva é demorada e artesanal.
Não é comum, mas se quiser, pode registrar o momento do dia em que foi escrita, como um diário compartilhado. Madrugada de quarta-feira de cinzas — por exemplo.
Essa partilha aproxima e convoca a imaginação do leitor quanto a urgência do que será lido. Se escrita pela manhã, pode significar a decisão de não protelar; ser a primeira coisa do dia a ser feita. Se durante à tarde, talvez seja algo mais ameno, em algum intervalo, depois das prioridades da agenda. Noite e madrugada me parecem ser os dois momentos mais delicados para a escrita de uma correspondência. Se à noite, é porque o assunto requer silêncio, tempo e, talvez, seja o resultado de um dia inteiro, pensando em cada parágrafo, frase, palavra que ajudará o encontro. E isso pode ser uma enxurrada no papel. Prepare o guarda-chuva e, talvez, lenços, além do desembaçador de lentes.
Mas se escreve ou recebe uma carta escrita de madrugada e posterior a um feriado, isso será muito mais sensível. Possivelmente, a remetente está insone, angustiada e completamente desesperada para ser ouvida. Cuidado, essa carta é um grito. Um pedido de socorro ou uma catarse ortográfica. Qualquer coisa que esteja escrita, será um abalo sísmico, o rompimento de uma barragem ou a ruptura de um último fio.
Cartas escritas pela manhã, tarde ou mesmo à noite, podem ter questões remediáveis; uma carta escrita na madrugada é sentença. Esteja preparada para o que vai ler. Talvez nem tenha resposta possível.
Uma carta pode ser longa, não precisa ser direta. Voltas e voltas no papel, como numa dança, podem embalar o leitor.
Pode mentir, não há nenhuma regra quanto a veracidade das informações, mas se puder ser sincera, tanto melhor para as relações. As cartas escritas na madrugada dificilmente aceitarão mentiras. Vai ter drama, choro, declarações aparentemente inesperadas e até possíveis revelações; mas enganar no papel da aurora, com uma noite sem dormir, não é comum.
E-mails enganam, bilhetes iludem, mensagens no celular, frequentemente, engabelam, ludibriam ou fingem, porque na instantaneidade a fraude sintetiza a conversa.
O tempo da carta, porque é ampliado, exige maior cuidado não só com as palavras, mas com a autenticidade do que deve ser dito. As missivas duram uma vida inteira, se for o desejo do destinatário e a possibilidade da sua preservação. As cartas são artigos de museus, coleções particulares e até públicas. Por isso são delicadas, já na concepção.
Uma carta pode ser um comunicado, sobre uma decisão que já se apresentava, mas não estava ainda estabelecida. Como o rompimento de uma sociedade, de um projeto ou de uma relação. Quatro ou cinco meses sem que remetente e destinatário se falassem e a carta, finalmente, chega. É uma pedra; um paralelepípedo gigante que destrói a única ponte. Doerá, durará, mas enfim o desfecho. Dois insones que voltarão a dormir.
Uma carta pode ser um pedido, a busca por uma salvação, o desejo de uma reconciliação ou só absolvição. Pode ser um ex-radical de extrema direita, acenando, fielmente, para a democracia; uma amizade que se perdeu em alguma travessia ou um quase amor que ainda espera a conclusão. Uma carta pode ser remédio ou eutanásia.
Pode estar impregnada de subjetivações. Uma carta é parcial, pode ser um aglomerado de paixões; de todos os tipos. Pode ser uma declaração de completa paixão em praça pública, sem praça e sem público; ou uma coleção de impropérios e acusações já proferidas, mas ainda não registradas permanentemente.
A missiva não precisa de lógica, embora coesão e coerência sejam essenciais. Não confundir passionalidade com completo desrespeito às leis gramaticais. Afinal, disso depende que a mensagem chegue corretamente ao seu destino. O número postal correto não garante o entendimento.
Numa carta cabe bem o arrependimento da escrita e, por isso, rasgá-la antes de colocá-la no envelope ou interceptá-la antes do carimbo na seção de enviar. Uma carta pode ser guardada também pelo remetente, cuja voz decidiu ocultar.
Uma missiva não é materialmente definitiva, como nenhum sentimento também é. Mas a memória do que remetente e destinatária sentiram em determinado momento — ou quando a carta foi escrita e lida ou à época do acontecimento relatado — essa permanece, como as palavras grafadas em cima das linhas de uma folha de papel. Por isso, depois da introdução com data, lugar e momento da escrita e dos parágrafos que explicam alguma situação peculiar, a despedida também deve ser cuidadosa.
Dizer que aguarda resposta não é suficiente para recebê-la, escrever que não deseja resposta não assegura que o receptor não queira, ainda, se pronunciar.
Depois de escrever as amenidades, as quais deseja compartilhar, ou os últimos suspiros antes da queda final, colocar no envelope e despachar para o futuro. A missiva enviada a libertará essa noite.
Última instrução: Não esperar nada.
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