segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Para depois do carnaval, lavar a calçada, mas não tirar toda a purpurina

    Amanhã eu ligarei, contarei tudo sobre o último ano, perguntarei  a ela sobre o dela e tentaremos entender o porquê de perdermos o contato mais uma vez. Explicarei sobre o emprego novo que é o mesmo, mas diferente; sobre a minha pesquisa, da qual mais falo do que escrevo, sobre o que eu acho que ela ainda não sabe e silenciarei sobre o eu que não quero que ela saiba, algo que morreu e não deixou boas memórias. Amanhã, deixarei que ela fale somente o que estiver confortável, as mortes dela também poderão ser esquecidas entre nós.

    Amanhã, quando nos falarmos, combinaremos um café ou outra bebida, depois do trabalho ou antes, como ela preferir. Recuperaremos um pouco os caminhos uma da outra e prometeremos nos falarmos mais vezes. Amanhã comentarei sobre o que guardei para falar com ela e me esforçarei para não perder nada, embora algo sempre nos escape no tempo.
    Amanhã, quando eu ligar, falarei de novo sobre o quanto a admiro, que os dias sem ela são menos felizes e que agora não iremos mais nos perder.

     Na próxima semana, eu falarei sobre o que eu sinto, sobre o que eu não sinto, mas gostaria de sentir  e que por isso eu sinto tanto. Abrirei o que faltou;  na gaveta, nenhum canto escondido, nenhum papel dobrado, nenhuma foto com o rosto rabiscado. Admitirei as saudades e confessarei, sem rubor, que o meu primeiro e último pensamento de cada dia têm um mesmo dono; há tempos.
    Da próxima vez que nos encontrarmos, falarei sem tantas restrições, não usarei as metáforas, não deixarei nada implícito. Não calcularei as possíveis quedas ou a quebra irreversível de qualquer coisa, depois da minha inteira sinceridade. 
    No próxima vez que nos virmos, serei inteiramente eu e se não coubermos os dois no mesmo banco, paciência e adeus, se necessário.

     No próximo aniversário da minha mãe, darei de presente para ela o gato; antes encomendarei as telas de proteção para as janelas e varanda. Cuidaremos, nós duas, das sete vidas dele, teremos muito o que fazer no futuro. No dia três ou seis, será a vez de levar o meu pai ao jogo do vasco; o time pode sempre falhar com ele, eu não posso mais. 
    No aniversário de casamento de ambos, farei o bolo de limão siciliano e convidarei a zeladora do condomínio para cantarmos parabéns para eles. Da próxima vez que a minha mãe ligar, eu não terei pressa em terminar o assunto. Quando meu pai me convidar para ir ao mercado no outro lado da cidade, eu não reclamarei; só me arrumarei e o encontrarei em meia hora.

    No próximo fim de semana, alimentarei os pombos no parque com miolos de pão da confeitaria Lisboa; comerei uma fatia de torta belga na loja de doces, assistirei à performance de algum artista da cidade e como uma mecenas pobre, darei as moedas que tenho no bolso, depois dos aplausos. Irei à sessão de cinema às três e tomarei sorvete de pistache com chocolate, depois do filme. 
    No próximo fim de semana, acordarei mais tarde, dormirei depois do almoço e não farei perguntas que exijam muito de mim ou de algum interlocutor; só coisas comezinhas. Para onde esse ônibus vai? Onde fica a rua do gás? Qual o horário da missa?

    Na próxima segunda-feira à noite, antes de dormir, desligarei todos os eletrônicos do quarto, deixarei uma fresta aberta da cortina, para ser acordada pela luz natural no dia seguinte e tentarei não pensar tanto. 
    Na manhã da terça-feira que vem, anotarei no diário o sonho recorrente dos últimos dias, exercício que a analista indicou há anos. Farei isso sete noites por semana e se não der, volto a fazer quando puder, sem culpa. Acenderei os incensos, mas ainda lerei o noticiário; ouvirei mantras, mas atenta às análises sobre política, amarei o meu país, ainda, mas nunca serei patriota. Na próxima segunda-feira, correrei dez quilômetros, mesmo que chova; nadarei por cinquenta minutos, mesmo que esteja frio. Adotarei um novo estilo de vida, mas não doutrinarei quem não o fizer comigo. Talvez reze, ore ou espere, em silêncio, qualquer manifestação de um outro mundo.
   
      Depois do carnaval, pegarei o contato do marceneiro para que ele venha tirar as medidas das prateleiras para a sala. Amanhã chegam mais livros e eu já não tenho bons lugares para guardá-los. Pedirei que as faça reforçadas, de madeira clara e aplique um impermeabilizante, porque talvez coloque uns vasos de plantas nas extremidades ou entre blocos de livros.
    Depois do Carnaval, volto às interrogações; da profissão, da vocação, do relógio biológico, das promessas que não cumpriram comigo e das que não cumpri com os outros. Depois do carnaval, uma lista de afazeres que podem esperar, mas eu não quero. 
    Para depois do Carnaval, lavar a calçada, mas não tirar toda a purpurina, para caminhar sobre o brilho e não adiar mais o essencial.




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