domingo, 29 de janeiro de 2023

Dos vestidos que ela esquece, eu guardo cada um

    — Não deu certo.
    Ela sussurra da porta, desolada. Pequena. Parece menor quando se decepciona. Com as mãos caídas em cima do tecido vermelho, ela admite que não conseguiu.
    Há dias, ela tentava refazer o itinerário que uma vida inteira fez. Medir, traçar linhas, cortar, encaixar e costurar as partes. Atendia a quase qualquer pedido de última hora; um decote com o qual não contava, uma manga de outro modelo, uma alça retirada ou colocada no improviso, um bolso, uma nesga, uma fenda. Tudo era possível e eu assistia ao acontecimento como se fosse mágica. Embora também soubesse o quanto a magia era laboriosa; às vezes passava noites, pensando em como cortar no tecido uma amostra desenhada no papel em 2D.

    Sua identidade esteve, muitas vezes,  profundamente ligada ao seu ofício, era o apelido — diminutivo do primeiro nome — sucedido pelo fazer.
    Agora, mais de cinco décadas depois, ela surge à porta e admite que fracassou. Mas não é para mim que ela tenta se explicar.
    Ela está parada à porta e embora me olhe, sussurra muito mais para si do que para qualquer outro ouvinte. Finalmente, parece admitir que talvez seja outra, que talvez tenha nascido uma, enquanto a outra partia.
 
    Falhou.
    Não é o primeiro contratempo, já vi outros. O ferro de passar roupas, cuja temperatura desregulada, queimava algum traje quase ou já finalizado; a máquina que, por algum defeito, prendia parte de um tecido nas engrenagens, uma tesoura elétrica que admitiu para ajudar no trabalho, a qual não se adaptou, e a viu desgovernada, desobediente aos traçados, cortar muito fora das margens. 
    Lubrificar o motor da máquina, trocar a lâmpada, as correias, as sapatas, as bobinas e recomeçar por um novo plano, algumas vezes com partes do tecido perdidas. Retomava o fôlego, do qual nem tínhamos consciência da perda, e recomeçava, às vezes eu antevia um choro, algumas lágrimas no tecido brilhavam contra a luz, mas quase sempre poucas, o rosto logo voltava a ser seco.
    Mas desta vez era diferente, o modelo era o mais simples, o tecido menos dificultoso, a tesoura era a tradicional, mas não soube como fazer o vestido. 

    Não é porque as mãos, com artroses,  dificultam a linha passar pelo buraco da agulha ou a firmar a tesoura em tecido fino; não é porque a visão que a cada dia é menos aguçada, a impede de enxergar as próprias marcações em giz. Também não são as dores na coluna, pela má postura corporal de mais de cinco décadas em um banco de madeira sem encosto ou a inflamação crônica do tendão do braço direito. O vestido não deu certo, porque ela não sabe mais como começar um vestido.
    Quem é essa agora? 
    Imagino a angústia. Imagino o desespero da constatação de que algo muito antigo e cotidiano se desmantelou. Como a professora que, num dia qualquer de trabalho, entra em sala de aula e não sabe como agir, não se lembra da chamada, de apagar o quadro ou segurar o giz; da escritora que ao se  sentar na mesa de trabalho, simplesmente não sabe como as palavras se organizam na tela ou no papel ou da cozinheira que ao abrir o pacote de arroz, não sabe que precisa ligar o fogão ou a panela elétrica. Tudo é vestido que não se realiza mais.

      Não saber como cortar o vestido não é grave, me consolo e tento confortá-la.
    — Já trabalhou demais. Agora é descansar. 
      Não é isso que nos abala; ela sabe e eu sei. Mas evitamos falar, ainda.
    Ter que aprender, na maturidade, a ser uma outra pessoa. Alguém cujo o nome não é mais sucedido pelo ofício ou ainda é, mas só por costume. Aprender a ser alguém de novo; uma adolescência tardia, sem tanto futuro brilhante à espera. 
    Ser alguém por si só, sem utilidade mercadológica; alguém que não sabe fazer vestidos, mas tem a memória do saber. Que ainda reconhece padrões de tramas só ao tocá-las, que adverte que amassam muito, embora macias ou que não absorvem o suor e por isso são mais desconfortáveis, que reconhece o cheiro do tecido, a sensação da linha, da tesoura, da fita métrica, escorregando entre as palmas das mãos.
  
    Quem ela é agora, partir do vestido vermelho que não sabe como começar?
 
    Mostro o vestido comprado numa loja de departamentos, ela critica, mas não com tanta altivez, ainda está magoada com a constatação recente. Minutos depois, ela troca as alças, porque não pareciam seguras. Não pedi, mas também não tentei interromper o seu impulso. Ela ainda luta pela identidade conhecida.
    Dos vestidos que ela esquece, eu guardarei cada um. Assisti com admiração quando ela sabia e também saberei assistir quando ela não souber mais. Por enquanto, só o vermelho foi o fracasso, talvez tentemos mais cores, talvez tentemos outras dela.
 


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, 010223

Prezada Amanda
Sensível expressionista da dor do próximo

Este texto, de uma candura explícita, é de um ato de amor inefável. Você descortina a dor com a arte de viver cerzindo, alinhavando, cosendo, costurando, consertando, remendando, ponteando a vida com um toque de encantamento lindo.

Feliz Ano Novo!!

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 02 de fevereiro de 2023

Querido Paulo,
há tantas memórias e tempos presentes a serem agradecidos. A sua visita e observação são dessas coisas, a serem sempre celebradas.
Feliz novo ano!!!

Abraços,
Amanda