domingo, 12 de março de 2023

Desde não sei quando, o domingo

     Uma garrafa de refrigerante pela metade, quase sem gás, que ninguém irá tomar. Uma parede que precisa pintar. Um exame médico que ainda não conseguiu marcar e um outro que não conseguiu pegar.
   Uma ou duas mágoas que tenta engolir com o café e biscoitos todas as manhãs. Um amigo irreconhecível às duas da tarde, na avenida principal. A amiga tão próxima, há dois anos do outro lado do oceano.

    O bloco de papel com anotações antigas — números, nomes, trajetos e palavras soltas — que não são arrancadas porque ainda podem voltar a ter sentido um dia. Um ímã de geladeira com um mini calendário, com marcações de aniversários e troca de gás. 

    A mesma playlist quando está triste, três outras quando está alegre. Alguém que amou e que agora, quando toca uma música específica, faz aparições como o patético fantasma de lençol. Nem medo nem susto.
    Soda cáustica debaixo da pia, para desentupir ralos, um tio alcoólatra, uma tia que nunca se recuperou de um noivado rompido.
 
    Uma criança com otite, um adolescente com nota vermelha, uma senhora com os seus doces de compota. Um cochilo depois do almoço. Um aniversariante contrariado pelos parabéns que sempre cantam, quando ele preferia que não. Suor, suco de maracujá e o que podia ter sido, mas não abrimos a porta. 
    Um nascimento, dois casamentos, uma crise conjugal sabida, outras tantas desconhecidas, um luto longo e demorado — será que é assim mesmo, estar quebrado?
    As fotos do quadro do corredor que são as mesmas há dez anos e que talvez nunca mais troquem, o tempo não passará nesses cinco metros e meio. Partilhar lágrimas, angústias, senhas, contas e o controle remoto. Somar alegrias, economias e os planos para as próximas férias e mais trinta anos — se tivermos sorte.
    A insistência no que não dará certo; a desistência do que quase deu e daria, se continuasse, mas não dá para saber. O filho Augusto, a sombrinha preta com cabo dourado, o guarda-chuva automático, os óculos de natação novos. Prints de conversas às três da manhã, as cópias dos certificados, da identidade, diploma e comprovante de residência para o próximo contrato; o RH.

     Pipoca com vinagre para estourar todos os grãos, o cheiro da cebola frita no azeite, o do café, passando pelo filtro, o do xampu no cabelo molhado, o do sabonete do bebê no banho. Barulho do hidrômetro, latidos dos cachorros da vizinhança — Maya, Spartacus e Jojó — a buzina do entregador, o entregador, avisando pelo interfone que não subirá. Meu pai, minha mãe, meus dois irmãos e trinta primos. Meus dois sobrenomes e o meu nome composto, na certidão de batismo e um cartão de uma freira chamada Mônica. Pomada Minancora, óleo de girassol, rosa mosqueta e coco no armário do banheiro. Uma biografia em cima do aparador com um marcador de páginas na metade, revista de 5000 palavras para circular. Ajuda com o imposto de renda e com a porta do guarda-roupas empenada.

   Um forno elétrico com dois pães de sal que sobraram do café da manhã, um pedaço de bolo com cobertura de brigadeiro no tupperware em cima da pia. Uma resistência nova para o chuveiro, luvas de silicone para lavar a louça, regata de barco no canal de TV por assinatura — quem assiste, além de nós? Nunca quisemos um barco. Eu não sei nadar e eles tampouco. 
    Sua mãe a cada dia mais esquecida, seu pai a cada dia menos paciente, o mundo no qual nascemos cada dia mais longe.
    Escrever para depois ter coragem de falar. Falar em voz alta e entender o quanto é ruim a ideia. Pedir uma indicação de psicanalista para descobrir que isso que dói um pouco mais a cada domingo, é a consciência da perda.
 
    Precisa engordar, tem que parar de fazer tantos exercícios, tem que pagar o INSS e um bom plano de saúde, precisa dormir mais e beber menos. Parar de gastar e se vestir melhor. Não se esquecer do cinto de segurança e evitar carona, Uber, táxi e ônibus depois das onze da noite. Regar a planta que eu te dei, ligar para o seu irmão, visitar a tia, tomar mais sol. Não fique chateada com o que eu falei, falo porque eu te amo. Boa semana para você também e venha antes de domingo, porque eu te amo.



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