A primeira vez em que ela tocou no assunto, tínhamos oito ou nove anos. Um comentário singelo seguido por outros, mais tarde. A maioria deles para responder alguma curiosidade minha.
— Minha mãe nunca comprou roupa para mim. Todas que eu uso, eu ganhei. São as patroas que dão.
Minha mãe também não comprava roupas com frequência para mim e eu usava algumas peças do vestuário que não serviam mais na minha irmã mais velha ou primas. Mas pelo menos duas vezes por ano, eu tinha alguma roupa só minha; nova, que além de escolher o modelo, podia ter o tecido e os botões da minha preferência. Privilégio de ser filha de uma costureira.
Ela contou como era não escolher o material escolar, as tiaras no cabelo, os sapatos — que às vezes eram um ou dois números maiores ou menores do que o seu pé. Móveis, brinquedos, até comida — quase tudo de segunda mão. Contou da TV cujos canais eram selecionados com a ajuda de um palito de churrasco, que permanecia no lugar deixado pelo botão perdido até ser desligada. Da cortina de dinossauros, da qual ela não gostava porque era uma menina e queria uma do Pequeno pônei ou da Moranguinho.
Dividíamos muitos sonhos irrealizáveis, inclusive o das cortinas. Que no meu caso nunca se realizou porque eu dividia o quarto com uma irmã adolescente, cujas preferências estéticas eram outras. Mas era uma impossibilidade que não me magoava, porque, mesmo que com alguma limitação, eu tinha escolha. Um tom neutro sempre ganhava. Mas para ela não. Ela era filha de uma empregada doméstica, mãe quase solo, porque o pai era muito ausente.
Quando as filhas das patroas chegavam com uma peça da última moda, ela sabia que um dia podia ser dela. Aprendeu, assim, a esperar por uma roupa dois ou três anos até, finalmente, ser dela. Às vezes desbotada, meio esgarçada, mas dela. Noutras vezes, alguma filha de outra empregada é quem era a privilegiada; partia a sua esperança.
Ela parecia, assim, a filha caçula de uma família de poucos recursos e de muitos filhos, sempre à espera de algo. Sempre grata pelo mínimo e muito resignada pelos sonhos que se desmanchavam e que ninguém protegia.
Acho que as privações dela não se restringiam aos bens materiais; era uma vida mais dura que a minha, menos sonhada, eu acho. Era comum que parasse a brincadeira para atender algum morador do prédio em que mãe trabalhava. Para ir à padaria, à banca, à farmácia ou ajudar com as compras de alguém. Tínhamos a mesma idade, ela muito menor do que eu, mas já carregava um senso de responsabilidade que me angustiava. Como pode um adulto qualquer interromper a brincadeira dela? Eu parava tudo imediatamente quando a minha mãe me chamava, mas não sem reclamar ou suplicar por alguns minutos a mais. Mas ela não. Bastava que a chamassem e ela se retirava da brincadeira, sem protestos. Era uma funcionária clandestina do condomínio, eu acho agora.
Varria a calçada, carregava baldes de água atrás da mãe, sempre muito, muito sérias as duas. Cuidava de crianças menores do que ela, os observava, atentamente, quando brincavam na praça, sem nunca se sentar no balanço ou subir no escorregador. Quase todos os fins de semana tinha alguma festa de aniversário para ela ir.
— Lá você deve aproveitar muito. Casa de festas, tudo chique, muitos brinquedos e coxinhas.
Ela sorria, olhando quase sempre para baixo:
— Não muito. Tenho que cuidar das crianças.
Ela era a mais responsável das crianças de dez anos que eu já havia conhecido e até para fazer piadas era preciso um pouco mais de sensibilidade, porque ela não alcançava muito bem as metáforas e ironias. Eu a achava muito medrosa, porque recusava todo convite para qualquer travessura, por mais pueril que fosse.
Quando conversamos sobre roupas, pela primeira vez, eu contei que às vezes alguma freguesa da minha mãe deixava o resto do tecido que sobrava para que ela fizesse alguma peça de roupa para mim ou para minha irmã e que por isso eu tinha uma quantidade razoável de roupas-irmãs pela cidade. Isso me deixava um pouco intranquila, quando eu ia ao Centro, porque tinha medo que as peças se encontrassem e me reconhecessem como uma espécie de refugo. Ela ouviu a história atentamente, não sorriu e respondeu com uma severidade desconcertante:
— Meu maior medo é ficarmos sem trabalho.
Nunca mais reclamei das sobras de pano. Nunca mais duvidei da coragem dela.
Eu podia não ser o que a minha mãe era. E ela lutou a todo custo para que eu não fosse. Não me ensinou nada de costura, embora eu tivesse sempre muito interesse.
Eu cresci, sabendo que teria mais oportunidades do que a minha mãe, que não reclamava do trabalho, mas podia desejar algo menos duro para as filhas. A minha amiga não. Ela aprendeu desde cedo a realizar todas as tarefas que a mãe podia ensinar e a mais importante delas, a não ficar sem trabalho.
Quando a mãe dela se separou do marido, ambas se mudaram do bairro sem se despedirem de quase ninguém. Eu só soube da mudança quando não havia mais chance de adeus.
Há uma semana, eu vi uma mulher adulta na TV local, quase uma senhora; que entrevistada sobre a falta de água no bairro, responde:
— Aqui sempre falta água, mas uma semana inteira, nunca tinha acontecido.
Na filmagem aparece uma casa simples, louças na pia, crianças sentadas em volta de uma mesa, repletas de livros e outros itens escolares, enquanto a voz da mulher, explica o ângulo:
— Não puderam nem ir à escola. Não há água para o banho desde domingo.
A mulher, na matéria do telejornal local, tem o mesmo nome da minha amiga de infância, numa legenda com um sobrenome que eu não conhecia, seguida da profissão: auxiliar de serviços gerais.
É ela, embora outra, embora adulta, embora envelhecida. É ela, a seriedade dela, os sonhos que cruelmente foram despedaçados e ninguém recolheu, é ela direta e com as precariedades de uma vida cuja infância foi sobrecarregada de medos, ausências e responsabilidades.
Agora é água; a falta que tem um nome. Ela disse que nunca tinha acontecido por uma semana inteira. Mas era só sobre a água, a pauta na TV. Porque sempre faltou. Porque a falta é a mais remota das coisas.
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