domingo, 26 de março de 2023

Era eu, mas não era mais

      Ando o mais depressa que eu posso. O dia está cheio e eu tenho cada atividade da manhã em tempo contado. Se eu me saio bem na agenda matinal, é mais provável que consiga cumprir a do restante do dia. 
    Ando o mais depressa que eu posso, porque tenho um contador de passos junto ao corpo e se me saio bem, alcanço as metas da semana. Ando depressa e penso depressa sobre o dia que desejo cumprir com a disciplina espartana a qual recorro quando estou muito próxima dos prazos, mas distante das suas concretizações. 
    Ando o mais depressa que eu posso e por isso desafio os semáforos, as buzinas, os ciclistas e os cães, aos quais gosto tanto de observar em dias tranquilos. Ando o mais depressa que eu posso, mas calculo os riscos, não posso ter nenhum incidente no percurso, porque não quero parar para resolver nada que não esteja na apertada agenda.
     Ando o mais depressa que eu posso, mas não é o suficiente para afastá-lo, para fazer com que ele desista de me alcançar.
 
    Quando olho para o lado, percebo o quanto ele se esforça para acompanhar meus passos. Tenho mais seis quilômetros pela frente, talvez dois minutos não façam diferença, no final. Então, diminuo o ritmo, tiro um dos fones do ouvido e dedico a ele a minha primeira interrupção do plano.
    Ele parece um pouco mais baixo do que eu — talvez tenha um metro setenta e cinco — também parece mais velho — talvez uns cinquenta anos — e bem menos objetivo do que eu, porque tem os olhos inquietos, suas pálpebras parecem tão rápidas quanto os meus pés antes do meu recuo providencial. Ele estende a mão e me dá um pequeno papel com um endereço escrito. 
    — Moça, a senhorita sabe onde fica o CAPS?
    Ele é mais rápido do que eu, mal me espera parar, por isso continuamos andando, embora em um ritmo muito mais lento; ele também tem pressa ou urgência, talvez esta última seja mais apropriada para denominar o que o olhar dele projeta. A pressa é minha; a dele é urgência.
    — Mas o CAPS ficava ali atrás, naquela casa de esquina.
    Ele acena com a cabeça, como quem concorda, mas logo se explica:
    — Acabei de ir lá e a dona me deu esse endereço... Parece que mudou.

    A rua que está escrita no papel não é tão longe, faz parte do meu percurso, inclusive. Mas eu faço habitualmente um outro caminho antes de chegar até à rua. Tomo um desvio e caminho dois quilômetros mais. Continuamos andando e penso em apontá-la mais de perto, logo que for possível visualizá-la. Estamos em ritmo muito mais lento do eu que planejava, porque ele não desiste de me acompanhar, mesmo que eu já tenha explicado a direção da rua, e os sapatos dele não parecem adaptados a uma caminhada rápida no asfalto. Ele usa botinas de camurça, com um elástico no tornozelo, lembro do meu avô e acabo me afeiçoando àquele caminhante perdido. 
    Mas o silêncio não dura, ele quer quebrar o gelo com a companhia que cativou:
    — É muito sofrimento, né? Antigamente a gente não sofria tanto.
    Não sei sobre o que ele se refere, tampouco sobre o tempo remoto do qual sente saudades, mas não tenho dificuldade em aderir ao seu lamento.
    — É sim, muito sofrimento. Está tudo cada dia mais difícil.
    Com essas duas frases entro na dimensão das conversas comezinhas com desconhecidos. Basta concordar e não se aprofundar em nada. Mas ele não se dá por satisfeito, o homem quase sem fôlego ao meu lado, se interessa, de repente, pela minha vida:
    — A senhorita parece bem jovem, tem filhos?
    — Tenho não senhor.
    — Graças a Deus! Eu tenho cinco. Um mais ingrato que o outro. Valorizam nada do que a gente faz.
    Não sei a que sofrimento ele se refere, mas talvez seja pela própria condição da sua procura, o endereço é de uma assistência psicossocial de saúde pública. 
    — Só hoje já fui em três lugares diferentes e ainda não são nem nove horas. 

    Ainda sorrio pelo inusitado "Graças a Deus" e continuamos lado a lado; dois desconhecidos a procura de um número em uma rua. Agora já me sinto mais do que acompanhada, passo a ser responsável pela sua segurança, ele parece ter dificuldade de atravessar as ruas. Encorajo que ele me siga, mostro o semáforo com sinal vermelho para os carros, o aguardo, quando ele anda mais devagar e tento ensinar, no nosso curto tempo, alguns signos das placas das ruas pelas quais passamos, talvez ele se oriente melhor nas próximas buscas.
    Quando chegamos ao pé da rua que eu subiria, aponto a rua do endereço, que já é a próxima e explico que é fácil ele encontrar agora. Mas ele me olha com desamparo, suas pálpebras não parecem mais nervosas e os olhos estão marejados; como abandoná-lo agora? Como dizer que o meu dia é mais importante do que aquilo que o faz sofrer?  A minha agenda não tem importância diante de um olhar desses.
    Desisto do meu trajeto, já o havia feito metros atrás, quando suavizei os passos e tirei os fones. Ele é o meu caminho agora. 
    — Estamos perto, vou levar o senhor até lá.
    — Obrigado, moça! É muito sofrimento, né? 
    Ele insiste e eu sei que não é mais uma afirmação entre desconhecidos; talvez seja um pedido de socorro e eu lanço o único salva-vidas que eu conheço agora:
    — É muito sofrimento.
 
    Eu não vou falar do céu, dos privilégios da respiração e do caminhar; não vou falar que uma família de cinco filhos é uma bênção e de que a sem filhos também é. Não tem cinema ou livro que eu possa dividir com ele agora; não tem museus, quadros, músicas maravilhosas com as quais eu possa atenuar seu sofrimento, como faço com o meu. Então compactuo com o lamento, rememoro a tragédia que é viver nesse país com tantas ausências. 
    — Está cada dia mais difícil.
    Sou eu quem reclamo.
    Chegamos à rua do endereço, olho, de novo, o número do prédio. Já olhei o papel três vezes e não memorizei, ele o deixa comigo, finalmente. Atravessamos mais um semáforo e devemos subir a rua mais íngreme do que se tornou o nosso percurso. Ele fala da dificuldade de se localizar nas ruas do Centro, respondo que ficaria tão perdida quanto ele, se eu estivesse no bairro onde ele mora, porque também não conheço.
    — Você lê, minha filha. É esperta. Aí é outra história.

    Ele tem razão, eu fui alfabetizada nas letras e nos mapas, não me perco tanto pelas cidades, porque sei identificar quando os números avançam ou retrocedem, o lado dos endereços com números pares e dos ímpares; as ruas que são paralelas e as principais;  ele não. Ele anda de costume. Por necessidade.
    Quando ele começa a perder o fôlego na subida, diminuo ainda mais a intensidade da caminhada;  passeamos, enquanto ele confidencia mais uma pessoalidade:
    — Mas a minha mulher não vai dar conta de subir aqui não. Está gorda feito um capado.
    Sabe, em outros tempos, cenários, em outras companhias eu teria o advertido pelo comentário, mas não cabe, não sinto que se explicasse que se referir à mulher assim é violento. Porque nós estamos perdidos; minha agenda, meu caminho, o sofrimento, os filhos. Que sentido teria tudo o que eu li até aqui? 
    Já avistamos o prédio amarelo, do endereço escrito no papel. Explico que há um ponto de ônibus em frente ao prédio, que ele poderá tomar um transporte público com ela. 
    — Que nada! Pago um Uber para trazer a gente.

    Aponto para o prédio e para a portaria. Seguro a sua mão e atravessamos a avenida. 
    — É só ir até aos homens parados na porta. É ali.
    Ele solta a minha mão e segue obstinado, como se ao desviar o olhar do objetivo que eu apontei, o fizesse se perder de novo. Alguns passos a mais e ele se lembra de me agradecer, se vira e deseja que Deus me acompanhe. 
    Vejo a sua imagem sumir do meu retrovisor imaginário. Sou grata pela mudança no meu cronograma, pelo meu atraso e pelos meus olhos apertados para ler o endereço; que nenhuma miopia me tire a visão das coisas, é pelo que clamo diariamente. Tenho vontade de chorar, é difícil a despedida daqueles que nos interrompem o caminho. Eu sofro quando preciso dizer adeus, mas eu sofreria mais se não fosse.  
    Sou o homem e a sua mulher gorda, sou a mulher que caminha e aquela que assiste a tudo sem nunca dizer uma palavra.  Sou um dos filhos, sou o médico, a sentença da loucura e sua não descoberta. 
    Essa liquidez das ruas, essa insólita maneira de eu ter o mundo é que amplia e aplaca o sofrimento que pode ser a vida. Terminei o percurso com meia hora de lucro. Era eu, mas não era mais quando cheguei em casa, de novo.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, 30 março 23

Querida Amanda
Dulcíssima no amor ao próximo

Quando leio um texto com esta qualidade, me vejo surfando nas Bem Aventuranças e penso - oxalá fosse o mundo assim, amando ao próximo como a si mesmo e quanto mais benigno mais bem-aventurado - Mateus 5:7 Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia.

Imagino o homem, ao longe, mirando sua presença, cantando a última estrofe desta música belíssima que vc postou, em tradução pitangueira:

Quantas coisas ficaram presas
Bem lá dentro no fundo da minha alma
Quantas luzes você deixou acesas
Eu não sei como vou apagá-las

Gratidão pela belíssima crônica.

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, trinta e um de março de 2023

Caro Paulo,
bem-aventurança é a sua visita, com a sua leitura gentil e os seus comentários que alargam, e muito, as minhas escritas/pensamentos. Muito obrigada por vir!

Já essa música, sempre volta por aqui. Acho letra e canção belíssimas e com a sua tradução...não teria estrofe final mais bonita! Esse é o desfecho que eu procurava.

Abraços, caro amigo!
Amanda Machado