domingo, 2 de abril de 2023

Dentro da queda, outra queda

    Lembrar  que o ranger da portas é o que humaniza a casa, anuncia vida em movimento; o muito que se passou e o que precisa deixar entrar. E que uma casa também é confusa, é trabalho, é atenção; mas também rede, banho morno e consolo. 
    Lembrar que a casa é porta-retratos, tapetes limpos, xícara de chá, cama macia, louça suja, miolo de pão no prato, resto de comida e pedaço de sabão no ralo da pia e água fresca no pote do gato. Que a tinta descasca, que o interfone toca antes das oito da manhã de sábado e que o filho da vizinha, quando canta a música que aprendeu na escola, pode ser a coisa mais terna de todo o dia.

    Que a lâmpada queima, que a pia entope, que o gás acaba, uma barata se esconde no armário, que às vezes o café é requentado, o telefone precisa ser atendido, porque do outro lado há angústia, e que lençóis e toalhas devem ser lavados em um dia da semana específico, se morar em apartamento sem área externa.
    Lembrar que os pais envelhecem, que os irmãos cultivam hábitos inesperados, mas não votam em fascistas e isso é um alívio. Que a coluna doerá, que os joelhos precisam ser fortalecidos, com exercícios e colágeno e que é bom diminuir o açúcar, o sal e o estresse. Os dois primeiros são mais fáceis. Lembrar de beber água, de fechar a torneira depois de enxaguar os pratos, de regar as plantas e de não usar a mangueira para lavar a calçada.

    Lembrar que o amor que não deu certo — porque nem todos dão, diferente do que certa doutrina contemporânea tanta nos empurrar — serve mais à terapia do que à literatura, ao menos lá encerramos em ambiente restrito. Lembrar que se o amor deu certo não estará escrito em manuais ou disponíveis em cursos, parcelados em doze vezes, ou conselhos gratuitos. Lembrar que se o amor deu certo; talvez nem seja percebido por outros.
    Lembrar que perdoar é possível e que desculpar, a quem quer que seja, é opcional. Também de que é preciso fincar bandeiras e demarcar limites e territórios; amor livre é também não se deixar ser invadida. Lembrar que a desistência também se senta no sofá da sala.

    Lembrar que a passagem do tempo não cura, mas desbota tanta coisa. Vermelhos encarnados se tornam rosas claros. Que a poeira debaixo do tapete se acumula e os papéis na gaveta, um dia, precisarão ser descartados. Que o rosto de quem demoramos a ver ou nunca mais vemos, começa a ser apagado sutilmente: as pintas, as cicatrizes, depois o formato dos lábios e dos olhos, o desenho do nariz. O cheiro e o som, tudo se apaga; mesmo que agora pareça impossível de ser esquecido. 
    Lembrar que chorar no banho pode ser revigorante, depois de secarmos o rosto com toalha macia; mas que soluçar na frente de quem nos acolhe é redentor e íntimo.

    Que dentro da xícara de café, um dia novo pode aparecer no fundo,  mesmo que em muito ele se pareça com os anteriores e com os que virão. Lembrar que acordar pode ser a qualquer hora e sonhar também. Lembrar que o aluguel vence dia cinco, o cartão no dia dez, mas o salário é no dia onze; lembrar de ajustar as finanças do jeito que dá.
    Que todos merecem dignidade, justiça e ouvir Chico Buarque. Lembrar que é violento viver e que é poético também. Um entrecruzamento entre Tarantino e Sofia Coppola.

    Que dentro de qualquer rio, existe um outro rio e dentro deste outro, outros mais. Por isso, a real potência das águas só é conhecida no mergulho. Ter tido aulas de natação não ajuda muito depois de colocar os pés do regato.
     Lembrar que esquecer é também o rio. Podemos atravessá-lo por muitos anos e, um dia, sermos afogados por alguma corrente desconhecida.
    Lembrar que dentro de si habitam muitas e que, ainda que o código de endereçamento postal seja o mesmo, nunca se sabe quem abrirá primeiro a carta. Lembrar de escrever a carta, postá-la e não esperar resposta, ainda que desejá-la profundamente.

    Dentro da dor, uma outra dor e outra e outra, até não doer mais; e isso não é cura é banho morno, pote de água para o gato, boletos no aparador da sala e salário na conta. Lembrar que dentro da queda há outra queda e outra e outra, que o chão não é macio, mas o corpo logo se acostuma e isso não é coragem, é sonho, bandeira, me ensina a não andar com os pés no chão, Sofia e Tarantino.

 


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, 12 abril de 2023, o primeiro ano das graças depois daquilo.

Prezada Amanda,

Adorei sua crônica. Continue assim, sempre nesta sincronicidade com a vida.

Amanda Machado disse...

Minas Geraes, décimo terceiro dia de abril de 2023 (o primeiro ano depois daquilo! 🙌)

Caro Paulo,
agradeço muitíssimo a visita, a leitura sempre muito generosa e a gentileza dos permanentes estímulos.
Gracias siempre! Beijos nas meninas