segunda-feira, 5 de junho de 2023

Sorte a deles que ainda não gritamos

    Encontro com ela na portaria; está com os olhos inchados de novo. Há meses ela me cumprimenta, mas parece não estar. É como uma secretária eletrônica, a voz é dela, o recado é dela, mas presença não há mais. 
    Não somos próximas, embora há dois anos nossos endereços tenham apenas um número de diferença. Trocamos cumprimentos quase diários nos corredores do prédio, frequentamos o mesmo supermercado às quartas à noite e manhãs de domingo e votamos nos mesmos itens em três ou quatro consultas entre condôminos. Afora essas pequenas identificações, não sabemos muito uma sobre a outra. 
    Sei, por exemplo, que ela veio de uma pequena cidade vizinha para trabalhar em alguma instituição pública federal, que tem um carro, mas nunca dirigiu, que consome produtos sem lactose, que votou no mesmo candidato que eu nas eleições presidenciais mais recentes e que chora todas as noites há pelo menos cinco meses, mesmo tempo em que a sua companheira partiu.
 
    Na rua, no prédio, entre vizinhos e funcionários do condomínio todos sabem do luto. Sabem da amiga, prima ou até irmã que ela perdeu, mas nunca ninguém disse mesmo o que elas eram. Talvez não saibam ou prefiram a omissão e o mistério. 
    Suspeito que essa ocultação sentencia o silêncio, o choro abafado de todos os dias e a distância da garagem por tantos meses. O carro lembra a companheira, as suas mãos morenas, os dedos arrendondados com unhas quadradas esmaltadas por algum verniz metálico sobre o volante, a sua precisão em estacionar, seus tiques, enquanto saía da vaga e via, pelo retrovisor que ela ajeitava diariamente, se o portão eletrônico fechava sem nenhuma irregularidade. 
    O luto sem o seu justo nome é só cinza; sem um desmoronamento público no completo escuro. Ela, agora, tem essa existência chiaroescuro renascentista, esses profundos mergulhos noturnos e idas forçadas à superfície durante o dia.

     Os vizinhos insistem na dor da perda de uma amiga; relembram e lamentam para a própria viúva a morte tão prematura de uma moça tão gentil. Mas todos sabem que a amizade era só uma das dimensões do relacionamento entre as duas. Era perceptível a qualquer pessoa a relação romântica, além dos cuidados que ambas dedicavam uma a outra. Os amantes têm uma cumplicidade sutil, as mãos que não se tocam, necessariamente, mas flutuam em um campo vital comum. A correspondência entre os olhares, ainda que estejam distantes. Um assunto pendente, a continuação da história interrompida pela entrada de alguém no elevador. Um grão, fio ou pelo que a mão do par retira do suéter e corrige sutilmente a imagem do amor. Há uma exclusividade no olhar, uma sensação de que ninguém mais pode entrar. Uma construção alta sem portas e escadas, porque não aceita visitas. 

    Um casal também se estabelece pelas iminências, pelo que ainda não aconteceu, mas aguarda na sala de espera. O risoto do jantar que ainda é arroz e vinho no carrinho de compras ao meio-dia. Um filho que ainda não tem mãos, pés e nariz, porque ainda é a interrupção da pílula e uma receita de zinco na saída do ginecologista. É não ter sido apresentado aos pais, mas saber que a mãe fez de um dos dentes de leite do amado um pingente e ao cumprimentá-la pela primeira vez ver esse pedaço de memória no colo materno; é ver nos olhos do pai a mesma cor e brilho que ama no filho dele. É a viagem que não tem previsão, mas já é esplêndida no roteiro. Os cinco dias que já evoluíram para oito e que agora são onze e um dia serão trinta. O desjejum especial de sábado que ainda são bocejos e espreguiçar matinal.
Um casal é sempre o que vai ser.
 
    E agora ela não tem mais um amanhã em comum. 
 
    As ruas, as peças de teatro, os filmes e as músicas que dividiria com a amada serão só dela e talvez, um dia, de outra. A vida vazia do esperar pela noite, pelo fim de semana, pelas férias, pela mulher da sua vida que vai atravessar o sinal e sorrir sem limites porque você não penteou o cabelo. A vida sem o carro que ela dirigia, sem a presença que fazia o seu coração bater por um nome; a manhã sem os ovos que ela fazia e você dizia que gostava porque gostava mesmo era de tudo o que ela fazia.
    O travesseiro à noite, não sufoca a perda do futuro, tampouco represa as lágrimas, só suaviza o estardalhaço delas. Há cinco meses ela chora só. Há cinco meses ela é a viúva que perdeu a amiga.

    Nós duas escutamos a agitação da tarde de quarta-feira na varanda da casa ao lado; nós duas — penso que ela também — nos sentimos ofendidas com os urros masculinistas do namorado da vizinha e a repetição dos mesmos gritos  pelo filho adolescente dela cujo pai desertou. A alegria tem formas estranhas de se manifestar, a alegria, ainda que não nos agrade, não deve ser censurada. Eles cantam parabéns e o rapaz comemora como não fazia há muito tempo. Eu precisava de silêncio, coloco os fones de ouvido e desisto da leitura. A vizinha do apartamento de cima eu não sei se agora chora ou dorme. Mas também não deve interferir em uma manifestação tão incomum na casa ao lado. Talvez ela deteste o silêncio esses dias.
    — E você faça o favor de ter muitas namoradas...nunca só uma de cada vez!
    Eles riem. Eu ignoro. Mas a família ao lado precisa do barulho. Torço também por quem grita.
 
    Amanhã eu a encontrarei no elevador e desejo muito que ela fale. algum dia, qualquer coisa sobre o vazio. Porque não reconheceram o amor não podem saber da tristeza do luto. A tristeza precisa ser pública em alguma instância, o grito faz parte da cura. Eles têm sorte que ainda não gritamos de tristeza, eles têm tido sorte de ainda não estarmos deseducadas de suportarmos a dor.
    Para viúva do quinto andar: doer vai ser para sempre, suponho. Mas sobreviver não vai demorar. Alegria e tristeza precisam de enunciados. Quando puder chorar sem sufocar com o travesseiro é só chorar. Como os vizinhos da casa ao lado fizeram com a alegria na quarta-feira à tarde; nenhum vizinho vai reclamar. Meus sentimentos pela perda do amor que nem sempre foi visível entre todos. Sinto pelo risoto que ficou no pacote de arroz no carrinho do supermercado.




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