Procura pelo pacote com os três pares de meia que comprou para levar. Tinha certeza que o tinha deixado em cima da cômoda, mas não está. Se lembra dos passaportes e começa a procurá-los. As sacolas com os exames que fez nos últimos dois dias estão espalhadas pelo apartamento, se move para juntá-las, pega a primeira e se lembra de que não comprou o creme de cabelo de uma marca brasileira, que a amiga pediu. Procura pelo celular para ver se há disponibilidade de entrega no site até o final de semana, mas, antes, responde a uma mensagem que chegou há alguns minutos e, por isso, começa uma conversa que abandona antes de terminá-la para consultar o preço de um coador de café individual com caneca esmaltada, assim de última hora.
Há três dias planeja o processo de arrumar as malas, há três dias que começa e nada termina, há três dias que não coloca nada dentro de nenhuma mala.
Se senta no sofá e escolhe deixar as malas para o dia seguinte. Vai assistir a um filme e preparar algo familiar para comer. Nada é mais apaziguador do que ainda estar aqui; nada é mais promissor e esperançoso do que saber que nos próximos dias não estará mais.
Há cinco meses desfruta do que nunca teria deixado, se não soubesse de outras promessas, há cinco meses se despede daquilo com o qual nem conseguiu se acostumar de novo.
Ainda chama o que tem aqui de passado e o que tem do outro lado, de futuro, só porque ter dois presentes simultâneos, separados por um oceano, às vezes é dilacerante. O presente é a cozinha com pastilhas ciano nas paredes, os copos do time de futebol e as taças que deixamos sujas na pia. Mas o presente é também o afeto do outro lado, numa chamada de vídeo, os regalos que prepara para a viagem e as meias que só serão usadas noutro continente.
Adia as malas e esconde a despedida que agora é latente. Ter saudades daqui, enquanto ainda está, parece mais comum do que quando não está. O armário é abarrotado de pertences de muitas épocas, agora, e em vinte quatro horas estará vazio ou quase. Nada se materializa tanto em despedida do que uma mala. Mais do que os últimos jantares, taças de vinho, fotos e vídeos da paisagem que já está mais dentro de si mesma, do que na memória do celular. Mais do que as declarações de quem sabe que vai perdê-la em poucas horas, mais do que as lágrimas e abraços. Talvez por isso adie.
Quando as meias, o coador de café de pano, a máscara de hidratação, os livros que não conseguiu ler ainda — os que trouxe e voltarão e os que comprou aqui e levará — as camisas de futebol, as camisetas com homenagens à Minas Gerais, as cartas, os vestidos floridos para a estação que a espera, as havaianas estampadas, os exames médicos e as miçangas do Parque Halfeld estiverem na mala, será a despedida do presente do lado de cá.
Adia as malas porque sabe que nunca caberá tudo o que gostaria, adia porque nem tudo ela poderá levar. Adia as malas porque o outro presente que a espera, ela ainda chama de futuro e a palavra, às vezes, pode paralisar.
Assiste a um filme enquanto balança a xícara que sempre encontrou aqui, cuja alça com um pequeno trincado, encaixa exatamente em cima do osso do dedo polegar, causando um desconforto inicial, mas logo se acomodando e evidenciando que só o dedo dela suporta a pequena rachadura. E a xícara é estar em casa.
Da primeira vez que atravessou o oceano não levou roupas íntimas nem escovas de dentes, chorou o trajeto quase inteiro de medo e não tinha quem segurasse a sua mão. Da segunda vez, levou calcinhas, escova de dentes e a de cabelo, chorou de saudade e não quis que ninguém segurasse a sua mão. Da terceira vez levou quase o mesmo que trouxe e só chorou porque a conexão atrasou e estava com fome e sono. Da quarta não tive notícias e na quinta vez me mandou uma mensagem quando chegou, como se tivéssemos nos despedido de uma festa e ela me tranquilizasse que estava em segurança, já em casa.
Agora não sei o que esquecerá deste lado e se precisará de alguma mão desta vez, mas suspeito que chore; acho que em todas as vezes chorou e o oceano não ficou mais largo por isso.
Atravessar o oceano sempre foi o de menos. Toda vez que arruma as
malas sabe que vai abandonar. Toda vez que arruma as
malas sabe que vai voltar para alguém e para algo que já a espera. Toda vez que arruma as malas não sabe o
que vai levar. A única certeza é a de não ir vazia e o maior esforço, agora, é a
de não ser taxada pelo excesso de bagagem.
Toda vez que embarca deixa
um pouco e leva o que antes não tinha. Quando o avião levantar o voo, sabe
que não termina. Esquecer não é mais novidade, chorar nunca foi.
O pai, a mãe e a xícara na cozinha de azulejos ciano, todos os dias, enquanto ela não está. Atravessar o oceano nunca foi o mais difícil; mas com o arrumar as malas ainda não se acostumou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário