A ideia de adotarmos um gato e darmos o nome Tariq ao bichano. Aprendermos o que ele come, escolhermos cuidadosamente um lugar confortável e bonito para o seu sono, mesmo que ele sempre procure a nossa cama no meio da noite. Comprarmos brinquedos coloridos, barulhentos e caros para descobrir que a embalagem faz mais sucesso que o conteúdo.
Mimarmos o gato, amarmos o gato, mantermos o gato como o único soberano da casa, termos sempre pelos nas roupas e os móveis, portas, cortinas e tapetes arranhados. Olharmos o gato como se ele existisse antes e depois de nós; não sabermos como era o mundo sem ele.
Dormirmos uma última noite, sem imaginarmos que era a derradeira, em trio. Passarmos os pés na maciez do gato e, depois, na nossa aspereza de fim. Procurarmos dois novos apartamento com varanda e dois lugares.
Aprendermos com o gato o valor da embalagem e o desprendimento da coisa.
A ideia de plantarmos um pé de mexerica no quintal da casa alugada, madressilvas próximas à janela, hortelã, manjericão, salsa e tomate cereja. Assistirmos às raízes se espalharem, imaginarmos na profundidade da terra, sonharmos com a sombra da árvore e uma cadeira bem embaixo da sua copa. Detectarmos uma praga, resistirmos aos pesticidas, curarmos com ervas e expectativas.
A ideia de que um pé de mexerica pode ser uma fonte eterna de assuntos, resoluções, planos e festas de final de ano ao seu redor. A ideia de que um pé de mexerica nos manteria sólidos, firmes e majestosos.
Entregarmos a casa ao proprietário, fazermos recomendações para os cuidados com a tangerineira, para dias depois ele derrubá-la para levantar uma edícula em seu lugar. Abandonarmos o pé de mexerica e a sombra sonhada.
A ideia de comprarmos uma toalha de mesa quadriculada para o café de todos os dias; recorrermos à toalha a cada falha, desilusão e dor de cabeça. Estendermos a toalha como quem levantasse a bandeira branca da desistência em meio ao fogo. Escolhermos a mesma toalha sempre que precisarmos de algum elemento pacificador de nós.
A ideia de comprarmos uma toalha de mesa quadriculada para não nos perdermos na volta de qualquer lugar, olhá-la detidamente a cada retorno. Esperança verde, vermelha, branca e com algumas linhas azuis, estendida na mesa do café, sempre que o mundo desequilibrar sob os nossos pés.
Estendermos a toalha, recolhermos a toalha, lavarmos, passarmos e estendermos de novo. Uma estampa, um tecido, um elemento doméstico que resgate abduzidos.
A ideia de chamarmos o ascensorista do elevador do escritório de chefe e o chefe de companheiro, o garçom de amigo e o amigo de irmão. A ideia de escolhermos uma família com aqueles que não tenhamos laços sanguíneos ou memórias. Oferecermos suporte a quem cujo passado não temos e o futuro também não almejamos ter, familiarizarmos sem culpas, sem contratos, sem fim.
A ideia de desabafarmos com o motorista do aplicativo, ouvirmos conselhos de desconhecidos em filas, chorarmos em um ombro sem históricos ou antecedentes e estabelecermos em um minuto a conversa que não conseguimos em décadas de mesmo teto.
Sentarmos em frente ao advogado e não sabermos como começar um divórcio já encaminhado por dentro.
A ideia de comprarmos livros que nunca conseguiremos ler; comprarmos livros e não assinarmos na primeira página, porque pensamos em bens em comum. Comprarmos autores, idiomas, gêneros, expectativas variadas e compartilharmos o projeto de lermos uma pilha deles nas férias; e nas férias, compramos outra pilha para outras férias.
A ideia de um biblioteca borgeana em um apartamento de dois quartos, muitos boletos, as jornadas de quarenta horas semanais de trabalho, mais dois pais e duas mães, dois chefes e dois mundos que querem coincidir, mas nem sempre conseguem.
A ideia de treinarmos para uma maratona. Comprarmos tênis, camisetas com tecido de proteção UV, encomendarmos um plano de treinamento, começarmos uma dieta, a dormirmos cedo, até que um de nós descubra que o joelho não poderá concorrer a nenhum metro. A ideia de um avançar e homenagear, na linha de chegada, o outro que ficou ou desistir, por ora, da corrida.
A ideia de aprendermos tango com uma professora argentina. Compramos sapatos, vinis de Gardel, cravos vermelhos de tecido para o cabelo ou lapela e não sermos capazes de sincronizarmos os passos. E então, a professora sugerir que dancemos com outros pares. A ideia de que o tango é maior do que nós, no salão.
A ideia culposa de eternidade. Admitimos a mortalidade, estamos acostumados a naufragar, conhecemos as raízes arrancadas, as pragas fatais, as toalhas das mesas chacoalhadas pelo vento, os vizinhos que não nos cumprimentam, os livros que nunca são devolvidos, as dores nos joelhos e os ritmos que se desencontram, mas ainda assim a ideia culposa de eternidade.
Não ter fim. Mesmo que Sherazade só tenha resistido até a milésima primeira noite, ignorar as previsões, as expectativas do público, negar os desertos, empurrar os vagões vazios até que o gato tenha sua guarda compartilhada. A ideia dolosa de não querer acabar depois do fim.
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