Coloco duas pedras de gelo nas raízes da orquídea, no aparador. Assisto ao gelo diminuir de tamanho até não ter mais bloco transparente nenhum. As flores, antes murchas, se erguem logo e esse é um fenômeno, dentre outros botânicos, que tenho gostado de acompanhar. Lá fora os ipês; aqui dentro as epífitas e as suculentas.
Os insumos na terra ainda estavam úmidos, quando mãos mais antigas depositam outros dois cubos. Não digo nada, só reparo no cuidado, que atrasado, se integra ao meu. A orientação da rega é antiga, nem água demais nem de menos, mas há casos em que o gesto é mais valioso do que o efeito que ele provoca. Não quero desconcertá-la com a confissão de que cheguei antes. Porque talvez a desampare ao não se sentir mais necessária às orquídeas.
Logo ela que conquistou esse lugar de indispensável e fundamental à vida do seu microcosmo. Logo ela cujas medidas, os ingredientes, as fórmulas químicas, os nomes, as datas, os substratos, as podas nunca passaram despercebidas.
Logo ela que entende que toda vida precisa de dedicação e cuidados; ela cuja vida também se alimenta de nutrir outras. Logo ela que equilibrou um mundo, sem quase nunca deixá-lo estremecer.
Logo ela que não admitia acordar mais tarde, tampouco não ser a última a ir dormir e, agora, fica sonolenta durante a tarde e não sai da cama antes das oito, no inverno.
Ela que vem antes de tudo e todos e que se acostumou aos rituais de partida, com lenço branco abanado pela mão que, agora, deposita gelo. Ela que sempre ficou para cuidar, ela que se estabeleceu como zeladora de um mundo que ela mesma criou.
Logo agora que ela tenta ter o mesmo domínio, mas que lentamente perde as horas, os números, a frequência e urgência de cada coisa; logo agora que ela se esquece, se perde, se desequilibra e que disfarça alguns vacilos. Agora que ela queima o arroz, esquece a temperatura do forno médio, os nomes mais conhecidos e cujo pudim não é mais o mesmo. Agora que as suas plantas murcham no calor e que os seus dedos já não conseguem fazer o encontro da linha e da agulha.
Logo agora que a ordem desse universo, tão conhecido e previsível, se torna a cada dia mais esquivo, cujas subidas parecem ainda mais escarpadas.
Para atravessar a sala e trazer um par de cubos de gelo até o vaso, atravessou uma areia movediça, não derrubou um pingo de água sequer no tapete, mas o esforço é hercúleo, vejo isso nas suas bochechas saturadas de vermelho.
Continuo calada, mas ela sabe que há algo de incomum na pequena crosta do vaso. Analisa, talvez desconfie que alguém mais regou a flor, pesquisa as raízes, enquanto eu me mantenho calada; não quero parecer usurpadora de nenhum ecossistema. Que eu criasse o meu próprio, talvez ela insinuasse ou pior, que passasse para a minha responsabilidade todo o seu planeta, agora; eu que ainda nem sei onde encontrar a sua porta.
Sentada na poltrona ao lado do aparador, eu me arrependo de ter matado a sede das Catlleyas, se eu esperasse só mais um pouco, se eu me mantivesse firme no papel que coube a mim desde o início dessa era familiar. Mas o dia de calor me deixou vulnerável aos cuidados de hidratação, depositei dois cubos de gelo nas raízes cujos cuidados não são meus.
Não matei a sede das epífitas de imediato, antes rondei sua nutridora, puxei assunto, comentei do calor. Quero ajudar, mas não quero. Quero dizer que eu posso partilhar das suas diligências, mas não quero que ela pense que não é imprescindível. Porque é.
Quando uma orquídea morre a dona das mãos experientes demora muito a se conformar, o faz somente quando encontra a causa, o erro crucial que vitimou a planta. Quase nunca é a rega, porque essa é primária demais. Há sempre um fungo, um organismo inesperado, um substrato cujas medidas vieram erradas da loja, um mau adubo.
Se começar a falhar no essencial talvez desista desse cuidado, se começar a errar no primário, talvez tenha medo de continuar e o medo dela ameaça a minha coragem. Acho duro mentir, mas ainda não estou pronta para ser plenamente sincera com as suas dificuldades; ela disfarça e eu aceito, ela encena e eu devolvo prontamente a fala. Nos nossos diálogos não cabem desistências ainda.
Antes que ela duvide da própria capacidade de análise ou acuse a qualquer outro pela irrigação adiantada, penso em confessar que coloquei duas pedras de gelo no vaso, a propósito de dividir os cuidados com os outros seres da casa.
Penso em olhar com ternura para ela e me oferecer para cuidar das plantas nessa primavera, se ela tiver outras prioridades, mesmo que eu desconfie que não tenha.
Penso em oferecer mais horas dos meus dias para manter a vegetação do seu mundo, penso em dizer que estou de dieta e nos livramos da sua decepção pelo pudim que não escorrega mais tão facilmente da forma. Não falo, ainda.
Dois dias depois e eu não me adianto na hidratação das plantas, deixarei que desidratem até a mão que as sustentam se ausente definitivamente. Não vou insurgir contra uma líder que nem é tirana, embora não haja nenhuma sucessora próxima que conheça a travessia da areia movediça tão bem. Talvez esse mundo só exista mesmo com ela.
Segurando um pote de plástico ela atravessa mais uma vez o tapete, deposita um cubo, depois outro, outro e, por fim, um quarto cubo de gelo.
— Na sexta-feira, só dois cubos foram suficientes. O engraçado é que sempre coloco quatro e hoje também parece menos quente.
A vida das Catlleyas ainda é dela. A profundidade das suas raízes, o verde das suas folhas, suas sedes e necessidades nutricionais; nada escapa a única governante desse Estado doméstico. Ela é, ela está. Não há motivo para temer,ela atravessará muitos solos movediços até deixar de ser imprescindível às epífitas.
— Vamos comer pudim, depois do almoço.
É a sentença do seu governo vitalício.
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