sexta-feira, 15 de março de 2024

Uma ilha tranquila dentro da tempestade

    Parece sexta-feira, fim de mês, parece término de ciclo. Parece segunda-feira, um novo mês, o despertar de outra fase. 
   Parece um vento que entra pela janela da sala e desestabiliza tudo. Faz com que a montanha de louça estremeça na pia, a pilha de livros fique um pouco mais torta, abala ideias, aumenta a chama que incinera sentimentos.      
    Parece agulha que arranha os discos, espeta convicções e faz pontos no rasgo tímido do peito, quase ignorado — não foi nada não!
    Parece emprego novo que perturba o sono da tarde, com as listas, as agendas, os montes de perguntas que eu não me importaria em responder em parcelas. O cartão é débito, o pagamento é inadiável. Minha inadimplência aparece, meu nome mais uma vez indigno de crédito.

    Mas parece também uma onda crescente de prosperidade que despeja na mesa de jantar toda a certeza do mundo. Ninguém mais magoará. A casa está limpa, o quarto aceso e a música voltou a tocar. O espelho não aflige, as mensagens que não chegam não importam mais. A hora do carteiro é irrelevante, o idioma não precisa mais de esforço; se o estrangeiro quiser conversação, ele que aprenda minha língua agora.
    Parece só moinho de vento, pode soltar a espada e relaxar na segurança. Tudo tão fiel quanto desenho de criança, olhos amarelos, cabelos de dinossauro, pernas de elefante. Parece a raiz de um problema arrancada. Não volta a crescer jamais.
    Parece tarde no sofá com um livro, com a sorte, com nenhuma palavra atravessada na garganta. Parece coaxar de rã no jardim, sem sapo nem príncipe. 

    Parece tormenta, tempestade no mar imprevista. Parece coletes de menos para muitas costas. Um comandante afônico, uma tripulação incapaz de ouvir ordens e o mar cada vez mais revolto. Parece que o bote virou e o resgaste custará a chegar. Parece braços dormentes de frio e uma quase desistência de nadar. Parece uma ilha muito longe e um mar muito, muito comprido. Parece que ninguém se salvará e talvez não queiram.
    Parece que o mar é o último lugar em vida e que afogar talvez seja menos doloroso do que queimar. Parece que a oração é para a salvação eterna e não para o desfecho na ilha. Num momento, o mar tranquiliza e nadar é menos torturante do que se deixar levar. A água salgada infinita do mar incorpora as muitas lágrimas. Parece que alguém grita: — Homem ao mar. Mas há muitas  mulheres também. E o grito é a ilha tranquila dentro da tempestade. Ninguém vai morrer sem esperança.
    
    Parece um amor bonito, sem preocupação estética, mas de suspensório e vestido de poás. Bonito de querer ter mais, de se sentir cheio, com entrada, prato principal, bebida, sobremesa e café. Uma comida caseira, que embora diferente, tem algo completamente familiar; lembra algo bom da infância, o tempero da avó, talvez. 
    Parece amor que dura, como do cachorro pelo dono, como o da menina pela professora, como o da criança pela rosa. Parece amor que desperta para ser livre, não faz chorar, não provoca dor ou insegurança. Parece fruto maduro, pronto para a mão ligeira alcançar. Parece uma ternura que acolhe, surpreende e não deixa cair no chão.

    Parece prova de matemática em maio. Manhã gelada, meu aniversário quase chegando, segundo bimestre e não saber nada. Parece a folha de papel com ideogramas completamente desconhecidos, mas exigindo resolução. Parece que vai ser, no mínimo, recuperação. E por isso o choro, o medo e o soluço interminável — liga para minha mãe. 
    Parece que nunca vai bem em exatas, parece que existe uma dimensão impenetrável neste mundo. Nem a curiosidade abre essa porta. Parece um túnel escuro e dá meia volta logo na entrada. O abismo de onde ninguém voltou.

    Parece que alguém lá fora chama e nunca foi tão silencioso tudo. Parece que há abraço, mão, um ombro quente que consola o vazio. E também é inútil chamar, ninguém vem, ninguém virá. A campainha tocou, palmas lá fora, os cachorros da rua estão em uma prosa infinita. Mesmo assim, a rua calada.
    Tudo é silêncio, crepúsculo e ninguém. Cadeiras vazias, gentes ocupadas. Tem o postal do palacete que não existe mais, um pé direito alto, com uma porta que parece baixa na fotografia. Mas que era imensa.
    Tem um casal de amantes que ainda não se conhece e o outro que se distancia. Torço para as vontades de todos, mas alguém certamente sairá contrariado; talvez os dois casais.

    Parece que o mesmo lugar onde termina é também o começo. A porta de saída, é quase sempre a mesma de entrada, só que com placas diferentes em cada lado. Numa prece pode ter raiva, num roupante pode ter afeto genuíno; numa prova de matemática, finalmente, a língua conhecida. Não precisa mais ter medo nem solidão, diz a música no carro. Todo dia e nenhum. 
    Parece que hoje é o início de um calendário de dias que desaparecem, até não doer e depois voltam, sem nenhuma burocracia prévia para existir de novo. É continuar a nadar e tentar não morrer.



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