Na volta, sobe as escadas com mais agilidade, já com as mãos vazias de novo, abre a porta, tira o sapato
e, descalça, segue novamente até à área de serviço, onde guarda um par e
calça o outro.
Antes de fazer o almoço e jantar, escolhe um álbum de jazz, e então, depois de iniciada a trilha sonora, lava cada panela, concha, tábua e colher somente com um pouco de água corrente e seca com o pano de prato, ainda que tudo estivesse limpo nos armários; mas é o ritual. Como antes de sair, conferir se as janelas estão mesmo fechadas, se os tapetes estão devidamente esticados e as rugas na colcha da cama, provocadas ao sentar para calçar um terceiro par de sapatos, foram desfeitas com os dedos quentes.
Para receber visitas, é o bolo de cenoura que ela bate no liquidificador, o conjunto de xícaras que fica na cristaleira da sala e a alfazema que borrifa em lugares estratégicos: almofadas, toalhas de rosto e cortinas.
Só conheço as cenas pelo som habitual e recorrente há mais de quinze anos. Nunca testemunhei completamente suas cerimônias e gestos — talvez alguns recortes, quando eu a ajudava com as sacolas ou ela me convidava para um café — mas os reconheço profundamente pela audição. Sei a ordem, o ritmo e, inclusive, me norteava por eles. Quando a primeira música começava, era também minha hora de parar o trabalho e pedir ou fazer o meu almoço.
Moramos no mesmo prédio e isso nos ligou de uma maneira irremediável, ela é a minha vizinha de cima. E um edifício residencial é uma espécie de organismo, cujos apartamentos funcionam individualmente, mas que, interligados, produzem uma mesma frequência. É como se o apartamento da vizinha fosse uma nota e o meu uma outra que a corresponde em plena harmonia.Temos nossas singularidades, mas acabamos por funcionar sincronizadas.
Há duas semanas, minha rotina se desestabilizou com o silêncio no apartamento dela. Eu e o gato nos atrasamos repetidas vezes, nosso almoço, meus e-mails e leituras, as sonecas e passeios dele, minhas corridas e o banho de sol dele. Nos tornamos mais sozinhos e ainda mais desorganizados.
À princípio não dividi com o gato a preocupação com a saúde dela, há um surto, mas a idade dela não é avançada, há a fragilidade do corpo, mas as condições de atendimento médico dela não são as piores. Há o meu medo, mas há também a esperança de recuperação.
Mas ao final das duas semanas, além de atrasados, nos tornamos menos confiantes; o porteiro, a síndica, o vizinho e o marido eram mais pragmáticos.
Perdida, experimentei trocar os sapatos antes de levar o lixo e depois de voltar. Angustiada, adicionei álbuns e mais álbuns de jazz na minha lista de reprodução do tocador. Xícaras, bolos de cenoura, pratos lavados depois de limpos, tudo o que aproximasse a minha nota da dela. Tudo que me afastasse do silêncio dela. O gato também sucumbiu à tristeza e perdeu boa parte do apetite, mas me ajudou com a troca dos sapatos. E nada.
Nem som, nem cheiro, nem nota que se complete à minha. Nem chaves, nem sacos de lixo ou sapatos grosseiros de borracha. A minha vida se modificou sem escolha, a do gato também é outra e ele só não reclama porque sabe que estou perdida.
Hoje é tormenta; as janelas estão fechadas e o pano de chão dobrado na fresta da porta. Estou refém desse silêncio imenso que inundou meu
apartamento desde que eu não pude mais ouvi-la. Não sei se é egoismo da
solidão ou saudade de uma ternura que habitava meu cubículo dentro do
peito.
Quando a partida é inevitável e a intimidade é pouca, paira a dúvida pela razão
fundamental das lágrimas. É amor ou falta? Saudade de uma pessoa ou do que ela ordenava no meu mundo? E se amor é isso: o ritual da organização; a respiração síncrona, a resposta da nota?
Chorei a manhã inteira pelo ritmo que se calou. Troquei os sapatos, fechei os sacos de lixo, mas fiquei completamente desamparada pelo soluço dele na cozinha, onde, antes, eu só ouvia o barulho dela. Agora ele tem uma partitura inteira para compor solitário, porque ainda não sabe de mim e do gato.
Foram muitos os rituais que aprendi com ela, mas o da despedida faltou. Permaneceremos calados e perdidos, até que eu descubra ou invente um.
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