Como não esperar, se há o vazio, se as ausências não diminuem e só parecem se aprofundar? Se a cada passo, um abismo sob os pés e olhar para trás já não dá, porque a memória se enche de neblina. Se o céu é de um azul límpido e ninguém mais chega para contemplar. Se o planeta Vênus que você enxerga daí é a Estrela Dalva que brilha aqui e, ainda assim, não sabemos como nos ligar de novo.
Com não desejar tão fortemente a sua chegada, se a escarlatina ainda mata no Brasil, se a dengue se prolonga estações afora e as crianças palestinas estão proibidas de sonhar? E no outono não faz mais frio, por causa das mudanças climáticas e os desastres que não são naturais arrastam gritos, latidos, tijolos e esperanças.
Como não me render a essa espera, se as minhas tias morrem seguidamente a cada mês, se a poesia não interessa a mais ninguém, se os meus alunos parecem mais frios a cada ano e os influencers me assustam com as certezas e manuais que eu não quero?
Como não me render a essa espera, se as minhas tias morrem seguidamente a cada mês, se a poesia não interessa a mais ninguém, se os meus alunos parecem mais frios a cada ano e os influencers me assustam com as certezas e manuais que eu não quero?
Como não tomar banho de porta aberta, se eu quero estar atenta à campainha, ao barulho do elevador, aos passos na escada, ao sinal do interfone, ao meu nome na sua boca quando você voltar?
Como não desligar a chaleira antes dela apitar, porque o gato deu um salto e eu acho que os gatos pressentem a chegada de alguém muito aguardado?
Como não abaixar a música e abandonar os fones e os protetores auriculares, porque talvez me chame em um sonho e eu não quero abafar a sua voz?
Como não domesticar a minha respiração e a do gato para que possamos ouvir a sua, atrás da porta, no momento exato da nossa salvação que só você pode trazer?
Como não abandonar a margarina, o bacon de supermercado e os embutidos da sessão de refrigerados, porque quero meu coração saudável, justo e forte em compasso equilibrado para não perder a vida, assim de modo doloso, que ainda teremos para partilhar?
Como faltar à musculação na manhã de segunda-feira, se o investimento faz contas para muitas manhãs e segundas-feiras futuras para reclamar, maldizer e, finalmente, descansar no sofá com pernas entrelaçadas, o gato esticado e a TV no mudo?
Como não organizar minhas finanças e perder a oportunidade de comprarmos um sítio, uma casa na praia, um rincão com janela para uma colina e os cães pastores que teremos para cuidar, quando nos aposentarmos?
Como não deixar de escrever noite adentro para que eu consiga ser mais descansada e ter menos olheiras, ter mais energia, disposição e vigor para cumprimentar os meus amigos, conhecidos e familiares na rua e atender às suas chamadas sem o rosto da operária que eu sou?
Como não deixar de aprender o espanhol para finalmente encontrar alguém que me ensine o seu idioma e cultura para que você, quando chegar, reconheça a sua aldeia na minha sala e para ela você queira, finalmente, se mudar?
Como não incluir um pedido de visto para o seu bairro, quando eu descobrir a embaixada que pode me deixar entrar e permanecer nele?
Como esquecer o ônibus espacial que imaginamos construir para migramos para o outro mundo, quando esse estivesse com os dias contados? Acho que chegou a hora.
Como deixar de me lembrar da vida antes de você para que ela seja completamente do seu conhecimento e que a sua ignorância sobre as minhas vidas passadas nos aproxime?
Como não congelar meus óvulos, se depois de maio, talvez, não tenhamos filhos e descongelar o feijão no dia exato da sua chegada? Como limpar uma geladeira frost free e a panela airfyer? Como não ser mais doméstica, se eu tenho uma casa e ela te espera também?
Como avarandar meus sonhos e murar as desconfianças, para que o nosso quintal tenha laranjas mais doces do que as dos meus pais? Como dizer a eles que a semente que vamos plantar foi trazida do estrangeiro? Como semear o desconhecido e irrigar com mesma água de gerações remotas e, ainda, esperar colher uma outra espécie? Não sabemos nada de agricultura.
Depois de maio, outubro, depois de outubro, dois mil e vinte nove; já não quero mais correr porque preciso ter tempo para sonhar.
Como não sonhar com os dias de liberdade e ternura? Como não sonhar com o dia da loteria acumulada e o cartão na minha mão sorteado? Como não sonhar com outra infância para mim só porque uma passou? Como não morrer de frio às vinte e três horas, depois que o portão da escola fecha atrás de mim, se já é maio?
Como não te sonhar nesse universo de descontentamento, solidões e correntes de água que aniquilam passos, memórias e esperas como a minha? Como não sonhar com você nesse agora, se falta pouco para que eu e o gato sejamos colonizados pela resignação?
4 comentários:
Wow, este texto me pegou! Como não gostar do que você escreve!? Este já é o meu favorito do seu novo livro
Aaaaa... não achava que se adequaria ao seu gosto, mas então já acrescento na nova coletânea. ❤
Vai ter alguma referência a Portugal no título?👀
Hahaha
Certamente! Algo como "As margens do Tejo, à margem das lágrimas"
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