Uma cadeira de couro preto, com detalhes em vermelho, acolchoada e majestosa inaugura a calçada da manhã de sábado. Uma cadeira de altura regulável, braços volumosos e encosto soberbo, cuja parte traseira ostenta um logotipo que lembra uma chama limita a minha passagem e abre espaço para os outros objetos domésticos. Um suntuoso trono adolescente concorre com a máquina de lavar calçadas do condomínio e marca o território que logo será ocupado por uma casa desfeita. A funcionária do prédio recua e os homens do caminhão se sentem mais à vontade para espalhar, pela calçada, os vestígios de um grupo de humanos.
Ao redor da cadeira, um dos homens estaciona um conjunto de tábuas largas que parece compor uma estante e caixas, muitas caixas de papelão sobre um sofá de três lugares cinza e duas poltronas estampadas com figuras geométricas em branco e preto. Imagino que as caixas abriguem livros, porque vi a estante e, em outras, sapatos, porque notei um pedaço de cadarço para fora de uma delas e um salto fino, escapando por um furo, possivelmente feito por ele mesmo. Entre móveis e as caixas, que abrigam, com discrição, os objetos menores, aparecem, aos poucos, uma dezena de outros objetos desabrigados, por escassez de caixas de papelão. Uma bola de basquete, uma almofada grande, com uma borda alta estampada com estrelas — possivelmente a cama de uma animal doméstico pequeno — um par de chinelos masculino, um mural com moldura rosa, um escorredor de pratos, duas avencas, uma escultura em madeira de um gato egípcio. Tudo isso na calçada de uma avenida movimentada, antes das oito da manhã.
Sigo acompanhando o translado de um lar, objetos que revelam um pouco sobre a civilização do apartamento quinhentos e três. Conheço-os há, pelo menos, quinze anos, desde que o casal chegou com um menino no colo e uma menina, que ainda não tinha rosto, mas tinha o meu nome. Mesmo depois de tantos encontros, conversas prosaicas na portaria ou elevador, sacolas carregadas, choros consolados e pequenas birras pacificadas, eu nunca soube tanto deles quanto agora, na calçada. Que, aos poucos desenha um quadro diverso do que aquele com o qual eu me acostumava. A organização da casa desmontada subitamente, ao menos para mim, segue um outro sistema, com dois agrupamentos separados por um corredor imaginário.
De um lado, a cadeira gamer preta e vermelha conduz a coleção, de outro, uma cômoda de quatro gavetas, branca, com detalhes de palha trançada nas bordas assume a dianteira. Atrás da cadeira, os chinelos, a bola de basquete, a estante e algumas caixas, atrás da cômoda branca, o mural com detalhes em cor de rosa, a caixa furada e o sofá.
Aos poucos, a organização em dois polos se torna mais explícita. O fogão de um lado, a geladeira de outro, as duas TVs que se separam, os colchões das camas que são organizados por essa linha imaginária que o corredor vazio ajuda a traçar.
A casa vulnerável na calçada se tornará duas. O grupo de humanos que acumulou esses bens devassados na avenida se repartirá. Outro caminhão estaciona na frente do prédio e os homens se dividem entre os polos que alimentavam, ainda há pouco.
A cadeira é içada para um dos caminhões e eu me lembro do menino que usava camisetas de times estrangeiros de futebol, gostava de dinossauros e de gibis da Turma da Mônica, quando o conheci. E que, mais tarde, precisou andar por quase seis meses apoiado por muletas, depois de um acidente no mar, nas férias. Um outro adulto assumiu o lugar do menino nos últimos anos, mas ainda tem o mesmo olhar entusiasmado de quem gostava do Cebolinha.
Quando a bola de basquete e o par de chinelos é acomodado no caminhão, escuto, muito longe, a buzina do carro do pai na garagem e o menino atrasado, correndo para a aula de xadrez, basquete, inglês, para a fisioterapia ou Enem.
Quando o quadro com moldura rosa é colocado no outro caminhão, a menina que eu conheço desde a chegada da maternidade, deitada confortavelmente numa cadeirinha de bebê para carro, vestida com um macacão vermelho parece saltar para dentro do caminhão-baú. Foi aos onze anos, quando a mãe dela me mostrou, à caminho do médico, ainda no elevador do prédio, aquela mecha comprida de cabelo branco na cabeça da filha, em uma mistura muito comum, especialmente na maternidade, de surpresa e culpa — surpreendida pelo traço de velhice precoce da filha e culpada por não ter percebido antes — eu testemunhei duas velhices peculiares. A da menina, de mesmo nome que o meu, que envelhecia enquanto brincava de boneca e
ninguém viu e o da mãe da menina, que aprendia a impossibilidade de saber e ver tudo o que acontecia com os filhos. Os dois envelhecimentos me marcaram.
Tudo o que antes estava na calçada é acomodado drasticamente em dois caminhões-baú. Toda a vulnerabilidade de um lar desfeito é recolhida em dois abrigos escuros e silenciosos. Da civilização que eu conheci um dia, ficarão paredes brancas e marcas de móveis no piso de cada um dos cômodos. O primeiro caminhão é fechado, o motorista e os outros dois carregadores se ajeitam nos bancos e partem com metade de uma casa desfeita.
No segundo caminhão, o último item a ser colocado é a cômoda de quatro gavetas. As portas do baú também são fechadas e eu fico na calçada, como a mãe, surpreendida e culpada por uma transformação que eu não vi acontecer. O que abrigará a quarta gaveta da cômoda, agora que o grupo se reparte? A faxina continua no condomínio, como se nenhuma perda representasse qualquer importância para um prédio de onze andares.
Desvio da água da faxina, retomo meu caminho para a casa, que ainda é minha e parece inteira. Sou, num mesmo tempo, mãe e menina de mecha de cabelo branco. Quero acompanhar as transformações e não ser somente surpreendida por elas, mas quero também mudar sem ter que falar com ninguém. Quero a verdade dos outros e manter o meu mistério. Há sempre reconstruções a serem encampadas, quando uma casa desmorona; às vezes termina numa calçada, às vezes não.
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