domingo, 26 de maio de 2024

E nenhuma barata voadora que abale essa certeza

    Existe essa pessoa que grita e sobe na cadeira ao descobrir uma barata no canto da sala. Uma pessoa que treme, que ameaça um choro de desamparo, só porque o inseto se move pela parede branca. Existe, também, essa outra que atravessa o corredor desconhecido, quando uma jovem mulher pede ajuda para entrar em casa, porque está impedida de seguir pela presença assustadora do artrópode marrom na escadaria do prédio, então, se posiciona, tira o sapato do próprio pé e acerta em cheio a barata. A jovem mulher, aliviada, agradece a coragem da outra. A dona do sapato se calça e arrasta, com o pé do sapato assassino, o inseto de casca brilhante até o asfalto. 
    Há num mundo ínfimo a que teme em segredo, e outra que mata, se acessada por um outro.
 
    Uma pessoa que limpa, com delicadeza, a sola do sapato, quando chega em casa, com os traços viscosos da morte que acabou de executar. Que passa a espuma branca com cheiro de menta em cada fresta da sola do Oxford para afastar de si o odor da morte, os restos da vida ceifada por um medo que não era o dela. Há nesse mesmo apartamento uma pessoa que dança e assa biscoitos no sábado pela manhã, tenta não ser enganada pelo prestador de serviços e aprende crochê em vídeos na internet. 
    Num apartamento de fachada cinza e branca, uma mulher esquenta a janta, enquanto pensa como atravessar o Atlântico sem se afogar.
 
     Há no duzentos e um, a dona não sei o quê, que paga suas contas, assume suas dívidas, pinta as próprias unhas e o cabelo da mãe e chora quando se lembra do barulho do sapato, chocando com a carcaça frágil da barata. Uma estrutura tão marrom, tão lustrosa, tão absolutamente inofensiva dizimada pelos pés civilizados da colonizadora covarde consigo e corajosa com outras.
    Essa pessoa que cruza os dedos quando fala a palavra azar, não se desespera quando o planejamento do trabalho é comprometido, porque tem sempre uma solução imediata, mas se desmancha de infelicidade se o sobrinho pequeno não parece exultante com o presente de aniversário.
    Existe essa pessoa que tem medo do mar e outra que descobre sua plenitude na água; uma que não sabe nadar e a outra que mergulha sempre, mesmo sem saber se tem volta.

    Há, nesse mundo ordinário de panelas, porta-lápis, quadro branco, carteiras escolares e vidro transparente para algodão na pia do banheiro, essa pessoa que não quer acreditar em outro mundo, que não seja esse e outra que se emociona ao avistar a torre de uma igreja que conhece e ainda roga por Nossa Senhora quando precisa de uma mãe.
    Existe essa voz que vacila quando fala do que dói e a outra, que é grave e combativa quando discursa sobre o que a mata. Há essa pessoa que canta em cima da música, enquanto limpa os solados de todos os sapatos assassinos que calçou nos últimos anos e a que desfruta, silenciosamente, de uma peça sinfônica, enquanto dobra panos de pratos bordados pela avó materna, com a figura de uma moça que nunca mostra o rosto, mas aos domingos vai à missa e às quartas colhe laranjas. 

    Existe essa facínora de baratas, que não resiste ao algodão doce rosa e ao suspiro de limão e se arrepende de uma morte, sem possibilidade de defesa, do inseto e do açúcar que não consegue se livrar.
    Há essa pessoa que não confia em milagres e uma outra que acredita sempre; uma que não espera romances e a outra que se comove com todos eles; há essa mulher que acorda cedo aos fins de semana para sonhar na cama até mais tarde. Essa pessoa que se despede, sem remorso, e essa outra que permanece na culpa. 
    Uma pessoa que sente o sangue congelar quando é surpreendida por pernas de barata na fronha do travesseiro ou na toalha de banho e a que avança, com o sapato na mão, em direção a uma vida resplandecente em marrom. 

    Há uma pessoa que atravessa a rua para não ter que conversar sobre as peripécias de um filhote de um cão recém adquirido pela vizinha e outra que acompanha, comovida e identificada, o resgate de um cavalo em cima do telhado. Esse cavalo sou eu, esse telhado é o sapato que mata e me mantém corajosa. 
    Existe essa pessoa que toma café sem açúcar e essa outra que compra um cachecol para o pai não se resfriar nesse inverno. Essa pessoa que liga para emergência, quando o morador do trezentos e quatro sofre uma queda e prefere pedir pizza pelo aplicativo para não falar com a atendente.
  
    Existe essa pessoa e uma outra, que dividem o aluguel, os traumas, a herança genética, os aparelhos reprodutor, digestivo e cardiorrespirátório, as expectativas, as desilusões e o tapete do banheiro. Essa e aquela outra, que diante de uma barata, se ela não tiver asas, têm a única certeza possível — é preciso abandonar o telhado e entrar na água se nenhuma corda vier.
 


2 comentários:

John disse...

Um dos melhores textos dessa nova fase. E ainda a figurar na galeria de grandes ficções que envolvem barata, como a da Clarice.

Amanda Machado disse...

E essa nova fase começa quando? Segunda década? 👀
Que bom que gostou! Fico lisonjeada pacas!
Obrigada pela leitura e comentário

Ps:Logo, logo já será um dos maiores comentadores daqui...rs