domingo, 5 de maio de 2024

O amor feio, vermelho e em caixa alta na porta de aço

    Letras garrafais, em caligrafia bonita, cor escarlate, na porta de aço branca: o amor é feio. Já estava ali quando eu passei e não vi. Uma inscrição muito evidente na porta de aço bem no meu caminho e eu precisei de uma segunda chance para vê-la. Certamente, na primeira vez em que passei por ela, olhava para o trânsito, para a construção logo em frente ou seguia muito concentrada noutra coisa para percebê-la ali.
    O amor é feio, escrito por uma mão segura, sem nenhum borrão ou falha. Uma declaração muito convicta de alguém que não hesitou sobre o que pensa do amor.
 
    O amor é feio, que eu só vejo na volta, interrompe a minha marcha disciplinada, me segura, me faz querer voltar e analisar todos os vestígios. Há quanto tempo está ali? Terá acontecido esta noite? Por que só o vi na volta? 
    Nos dias de semana, a porta de aço branca já está suspensa quando eu passo. Cadeiras, sofás, puffs, banquinhos, divãs, ladeados por rolos de tecidos e espumas ocupam a paisagem daquele lado. A loja de reforma de estofados abre antes das nove, que é frequentemente o horário que eu passo pela sua calçada, talvez a frase já estivesse lá e eu não poderia vê-la. Se foi há mais tempo, por que ninguém apagou? 

    Analiso a tinta, que parece muito forte e delicada para ser spray, mas fosca para ser tinta esmalte e grossa demais para ser caneta. Passo os dedos sobre cada letra, mas só sinto o metal da porta, a tinta foi absorvida por ele, não há relevos. O vermelho é encarnado e recente, mas não tenho meios para precisar a data do aviso ou será desabafo? Ou filosofia? Não parece prece, mas há algo de messiânico, sem espaço para dúvidas. Nenhuma pontuação para ajudar. O amor é. O amor não parece que é ou talvez seja. O amor é. Segundo quem? Quem atribuiu ao amor a feiura? E que tipo de fealdade é esta? 
    O pensamento não tem atribuição a um autor, não cita, não usa exemplos, não há outro recurso discursivo além da própria afirmação: O amor é feio. E eu só o vejo numa segunda chance. Será que eu não vi antes porque evitei a constatação da inscrição. Será que eu vi e não li ou li e não compreendi? O que terá sido?

    Procuro por pingos de tinta no chão, qualquer resquício do crime, ali na calçada. Talvez uma tampa de caneta, um pincel, um lacre, algum material que responda, ao menos, a minha curiosidade técnica, de quando e como. Mas nada ao redor, além de uma garrafa vazia de cerveja de 330 ml, bem embaixo da inscrição. Terá o álcool potencializado a certeza de que o amor é mesmo feio? Ou a garrafa veio depois? De um leitor, que como eu, não pode seguir sem analisar o amor vermelho em caixa alta.
    O trânsito começa a ficar mais intenso em frente à inscrição, não consigo mais ser discreta e me incomodo com os olhares pelos retrovisores e janelas com vidros abaixados, também, preciso seguir. Não quero abandonar a frase sem nenhum esclarecimento, mas ali parada também não pareço fazer nenhum tipo de avanço. 
    O amor é feio me segue até em casa. O amor é feio está incrustado na sola do tênis, no elástico da meia, no suor do top e no cós do meu short. O amor é feio vai me acompanhar durante todo o domingo.
 
    O amor é feio não limpa com sabonete e água corrente; ele entranha na minha toalha de banho e na que eu uso para segurar o cabelo molhado. Visto outra roupa e no reflexo do espelho, lá está ele, em caixa alta e sem pontuação;vermelho vivo, quase pulsante.
    Separo um prato para mim e outro para o amor é feio, dois copos, dois pares de talheres, duas conchas de feijão para cada um. Na siesta ele coloca a cabeça no outro travesseiro e me encara antes de fecharmos os olhos; o amor é feio sonha na minha cama, enquanto eu sonho com ele. Acordo do pesadelo de não compreender o aviso-inscrição e ele ainda está lá. 
 
    O amor é feio veio comigo, como um enigma que só me abandonará depois que eu decifrá-lo. Resolvo chamá-lo para uma conversa, faço um café, sirvo biscoitos e meio queijo curado em travessas que só uso para as visitas, arrumo a mesa e ofereço uma xícara ao amor é feio. Ele me olha atento, mas permanece mudo. Explico-lhe que estou acostumada aos domingos desacompanhada e sem mistérios, que preferia descansar na ignorância do que investigar mais uma situação fundamental; que preferia relativizar a ter que lidar com a precisão do seu corpo vermelho e linear. O amor é feio não se comove, me ajuda a tirar a mesa e seca a louça.
 
    O amor é feio está parado no meio da minha cozinha e me olha. Eu não tenho saída, não sei discordar de uma companhia tão genuína. Começo então meu próprio inventário do amor que é feio. O amor feio de vísceras, de líquidos, de gripes ou doenças incuráveis, o amor feio do parto natural de gritos, de placenta, de odores e sangue. O amor feio da casa que não foi arrumada, do cabelo que não foi penteado, da nódoa da camiseta velha. O amor feio do soro caseiro que a mão mexe na esperança de que o acamado melhore, o amor feio da sala de visitas e do respirador mecânico na UTI. O amor feio das dívidas, das incertezas, dos declínios, das derrotas. O amor feio do cansaço, da impaciência, da falta de desejo. O amor feio dos silêncios estranhos, das palavras ásperas e dos desencantos; o amor feio da guerra-fria, da cama dura e do quarto escuro. O amor feio que não se admira no visor da câmera, que não dedica poemas, não escreve cartas ridículas de amor, porque está ocupado demais segurando o lenço, trocando o lençol, ninando a criança que acordou no meio da noite e esperando; de novo, esperando.

    O amor feio me ouviu, pendurou o pano de prato na tampa do fogão, me olhou satisfeito, tomou o corredor e eu só o ouvi abrir e bater a porta. O amor é feio se deu por satisfeito e me libertou. O amor é feio em vermelho, em letras maiúsculas e caligrafia bonita na porta de aço quis me dar uma segunda chance e se foi.