domingo, 23 de março de 2025

O que sentimos por último


    Uma mulher vestida com uma blusa vermelha de seda e uma saia bege plissada, em pé, enquanto assiste à performance de outros convidados na pista de dança. Parada, com os olhos brilhantes e um copo de refrigerante em uma das mãos, faz a confissão sobre um desejo que eu não ouvi e só soube depois. Eu saía da pista, procurava uma cadeira para aliviar a tensão dos músculos, exigidos demais pelo salto da sandália, mas a vi e a convidei para dançar.

    Nem os títulos, as traições, os inevitáveis adeuses, as descobertas, as falências múltiplas, tampouco as perdas dilacerantes ou os muitos moinhos contra os quais investiu sua luta. Nem os filhos gestados e paridos, as roupas abandonadas porque a cintura engrossou, as lições de casa no caderno sem pautas e mais tarde, com as linhas, os colares de macarrão e a fruteira de palito de picolés, em cima da mesa de centro, de gosto questionável pelos outros.   

        Nem os abraços, os costumes, a cama, ainda quente, com o cheiro da criança amada que cresce e vai à escola. Nem os beijos doces de suas crias bonitas, as receitas de família ou de um site qualquer nem as muitas idas ao supermercado, os doentes a quem assistiu, os banhos em idosos ou bebês recém-nascidos nem as duas adolescências desafiadoras, os vestidos brilhantes nas formaturas nem a lágrima na borda da sepultura do filho.   

    Nem o uniforme de enfermeira da Santa Casa de Misericórdia, a grinalda e o véu longuíssimo do casamento na Igreja Metodista nem o nome bíblico da filha primogênita. 
    Nem as injeções em doentes, os almoços do pai e as três refeições diárias dos filhos, os colares de pérola, os brincos dourados, a tinta loira no cabelo curto, tampouco os preenchimentos nos lábios dos últimos anos. Nem a própria infância árida de afetos e miserável de consolos, o casamento feliz e um companheiro apaixonado de quem a vida foi menos longa do que a dela. 
    Nem o pó de arroz cuja marca já não existe mais, o blush, o luto que não acaba, as noites de choro e a ginástica da manhã. Nem as netas de cabelos cacheados e o milagre de um céu rosado no fim de tarde de setembro. 

    Nem os porta-retratos e a juventude eterna do filho que preferia grisalho agora, nem as matinês de cinema no namoro, o primeiro emprego e a casa a qual desejou não retornar e que desbotou sem ela nem as hortênsias que só regou depois de adulta. Nenhuma certidão, registro, documento em mais de uma via, cartórios, advogados, contadores ou uma pasta de arquivos no computador da filha. Nem o cachorro que ela permite que suba no sofá.
  Nem na ponta da agulha com a qual ela prega o botão na camisa do genro, na escova que ela usa para pentear o cabelo, no café que toma às quatro da tarde. Nem no xampu preferido, nas gotas do perfume que usa há vinte anos, nas viagens com a família, nas igrejas que frequenta.

      Nem a mãe de gênio difícil, o pai amoroso, mas omisso, os irmãos muito diferentes dela, a primeira relação familiar conflituosa e a que conseguiu construir. Em nenhuma desistência que a fragilizou ou em cada obstinação que ela capitaneou solitária. 
    Com uma blusa vermelha cintilante e saia plissada, com um copo de refrigerante na mão, eu quis parar e ela queria dançar. Em trinta segundos, os olhos brilhantes dela cruzaram com os meus e o convite. Nenhum histórico que nos abonasse ou condenasse, nada antes e  nenhuma expectativa de amanhã; só a música que atravessava os nossos corpos e nos conduzia ao desejo novo dela e uma satisfação remota minha.

        Semanas depois, eu recebo o recado e um vídeo dela com saia vermelha e coreografia cigana:
    —Me matriculei na aula de dança.
        Nada do eu que conheci dela até agora é mais revelador e próximo do que nós duas em uma pista, com luzes e música. Minha tia sexagenária agora dança. O que sentimos por último é mais de nós do que tudo o que fizemos até chegar aqui.




Nenhum comentário: