domingo, 16 de março de 2025

Nem trovões ou cataclismos, mas carnaval

  Nem falésias nem planaltos,  nem cumes ou sopés; só um buraco invisível na geografia do mundo. Nenhum sinalizador, nenhuma referência cartográfica, só o minuto seguinte à dissolução, e não passa. A tristeza é a última a descer do comboio e embora seja a menos estrondosa, é a que detém atenção. A raiva é a única a se manifestar no guichê da companhia, embora rechaçada, é essencial para a viagem de volta.
  Ninguém sabe ao certo, mas também não ignoram completamente o acidente geológico. 
 
  E lá fora, a música, os sambas de uma festa e as vozes leais de quem faz vigília às margens do buraco,  porque não querem deixá-la só com o silêncio. 
   Uma fenda sem medidas, sem localização, nenhum histórico de formação; só um buraco invisível no mundo.      
   Nenhum desmoronamento aparente, nem de construções ou crenças, só um buraco irrelevante na costura do mundo.  Nem parques ou bosques, nem arranha-céus ou chalés, nenhuma arquitetura que assimile a grotesca fenda. 

  Nem vulcões ou tornados, só a neblina de uma manhã de ausências na soleira. Todas chegam agora. Crescer é perder. No dia da sentida partida, enfileiram-se todas as ausências anteriores e continuam a doer. O tempo não supera o buraco, o tempo diminui a espessura da abertura.  
  Nem eclipses nem lua vermelha; só um céu de verão igual ao de ontem. Nada que justifique deitar com a cortina aberta e olhar o céu até dormir. Do buraco, o mesmo céu. 
  
  Nenhuma manada de mamutes ou rinocerontes; só um gato amarelo ao pé da cama com uma oferta de amor da qual entendo quase nada. Por que assim tão distante noutros dias e agora tão disponível, quando não sei corresponder? Um gato é o único mistério que não dói. 
  Nem safari nem visita ao zoológico, mas uma lança atravessada em algum órgão vital; uma ferida transparente no organismo do mundo. Sem prescrições químicas ou terapêuticas que curem. Um buraco no peito e nenhum concreto que cubra.
 
  Nem Odisseia nem Lusíadas, só um capítulo inicial de Grande sertão Veredas, quando Riobaldo ainda não amava Diadorim. Amar o desconhecido, o para sempre outro. Diadorim uma neblina. 
  Nem missivas estrangeiras ou telegramas oficiais, só uma nota no celular. Da despedida, o escrito não é o mais importante, mas o falado, aos poucos, é perdido. No fim, duas grandes históricas inventadas. Capítulos silenciados, frases subvertidas, diálogos que nunca existiram. Um buraco também é uma escrita.
 
  Nem mar profundo ou cabeceiras de água; só uma goteira, ritmando a solidão instalada no quintal. Nas roupas estendidas no varal, na pintura descascada misturada com os musgos que se alastram pelo muro, nas sementes que ainda não foram plantadas, nas germinadas e nas que não vingaram. 
 Nem recomeço ou outra estrada, só a rotina de sobreviver ao infinito destroçar de sonhos. Um buraco não é uma curva, uma partida ou uma chegada, só um acidente microscópico inconsolável e duradouro. Infinita passagem e inevitável visita. Sentada com o gato, a tristeza e a raiva, esperando pela quarta-feira de cinzas e, antes, um samba-enredo que traduza a nossa dor.    
 
  Nem certezas nem evidências, só a suspeita de mais um declive incontornável. Nem trovões ou cataclismos, mas carnaval.
 

Nenhum comentário: