Pus as tuas últimas roupas na mala, aquela que você usava para as viagens as quais, tantas vezes, eu também empreendi.
À medida que dobrava cada peça, apagava um pouco os braços, as axilas quentes, os dedos finos e macios das mãos, as pernas, as nádegas, o membro enrijecido e os joanetes dos pés. Dobrava as caminhadas, guardava as fugas das aulas de francês no meio da tarde para a sessão de cinema ou cerveja, desfazia dos bilhetes na porta da geladeira e da caligrafia, que ainda não consigo apagar; porque, talvez, alguma coisa ainda resista. Meti seus sapatos em um saco de lixo, porque não cabiam na mala e deitei fora toda a bagagem no depósito do condomínio para ir embora, quando o o caminhão de limpeza pública passar. Seus chinelos de borracha ficaram, porque são do meu número e eu sempre os usei mais do que você.
Subi ao apartamento pelas escadas e, quando eu me lembrei que fiz isso pela última vez contigo, senti o nó na garganta e a dúvida se devia esperar pelo elevador. Preferi enfrentar a subida, arrastando a lembrança, porque sei que dezenas delas me alcançarão nos próximos anos, talvez até o fim da vida, sem ninguém mais saber. Quando cheguei à porta do apartamento, bati a campainha, como fazia, mesmo quando tinha chave na bolsa, mas ninguém mais veio me atender. Tudo é novo agora, é um depois de você que tento não evidenciar, mas se me perguntam também não nego em definitivo. Dos outros eu não mencionei mais os nomes, já o seu eu optei pela civilidade de mencionar, mesmo que algumas vezes isso faça com que os músculos do meu corpo se contraiam. Simulo a naturalidade do depois de acabar.
Despachada a bagagem, ainda ficam os cheiros, diversos deles que ainda servirão para que a sua presença se mantenha contra qualquer vontade. O cheiro do sabonete no banho, mesmo que eu tenha trocado de marca, a sua espuma ainda tem um aroma-base que me submete a lembrança do seu dorso melindroso às cócegas, na saída do chuveiro. O cheiro dos ovos, da banana, do azeite de oliva e do miojo; o cheiro de menta e de qualquer disco de vinil, da chuva e do cimento da varanda nos dias de muito sol; das flores frescas e das que morrem no vaso em cima da pia da cozinha; sou um cão com a memória olfativa lotada de alavancas.
As paredes do apartamento ainda estão vazias. Anteontem, removi os últimos pregos para começar a pintura hoje à tarde. Enquanto eu escolhia as cores, pensava nas quais você não aprovaria, mas o método acabou por ser fracassado, já que eu pensava em desagradá-lo, quando eu devia não trazê-lo de volta para essa intimidade. Escolhi a Aurora primaveril para uma das paredes da sala, o Bosque Aprazível para o corredor e para quarto, escolhi o Terra Batida para parede de cabeceira da cama; tudo tão telúrico que eu acho que, na verdade, são mais do gosto de um engenheiro florestal do que de uma contadora. Pintei o corredor, por ora. E pensei que também devo aprender a não insistir no esquecimento, alguns gostos seus foram partilhados comigo, não tenho que evitar esse tipo de osmose.
O barulho do elevador ainda me deixa em suspensão e nenhum som de chave na fechadura diz respeito a mim, agora. Mesmo assim, acordo com saudade e expectativa a qualquer ruído que pareça familiar. Chuveiro ligado, torradeira, máquina de lavar ou de café, apitando. O som das panelas, na cozinha do vizinho, às vezes, me faz saltar mais rápido da cama, até que eu aceite a realidade de menos um. Mas os álbuns, as trilhas sonoras, as óperas, os shows, as bandas alternativas, a esses eu não ensaio resistência; recebo o legado com algum sofrimento, mas muito mais gratidão. De Stones à Timber Timbre; de Scott Walker à Buffalo Springgfield, Milton e Edu Lobo, um dia talvez eu não me lembre imediatamente de você, quando eu escutá-los no meu fone.
O cão me segue pela casa, acho que ele também sente falta de uma outra presença; somos um o reflexo do outro, meio cabisbaixos, meio atletas convictos da recuperação. Passo meus pés na barriga dele e me lembro de que você fazia o mesmo, cruzamos os nossos olhares e o cão confirma a lembrança. Enquanto ando descalça pela cozinha, piso em alguma pequena poça que eu me esqueci de secar isso também me lembra que eu o acusava de sempre deixar para trás rastros de algum líquido, água, café, suco ou vinho.
Quando me deito, finalmente cansada e entregue ao sono, a textura macia e quente do cobertor me lembra um outro corpo e isso eu não posso dividir com o cão ou apagar com um pano de chão.
Esses dias, o vizinho da frente puxou conversa no elevador, me contou que ficou viúvo por duas vezes e que se divorciou da terceira companheira. Ouvi a sua história, mas não consegui e nem quis falar sobre a minha. Porque simplesmente não pude me identificar com os três adeuses do meu vizinho octogenário, só porque ainda não me aconteceu o adeus definitivo, para que eu pudesse compartilhar com um conhecido no elevador.
Chegamos ao nosso andar, nos despedimos e eu abria a porta apressada para te contar o inusitado depoimento no elevador. Então, abro a porta e o cão aparece, o cheiro vem, o som me assalta e a parede do corredor recém-pintada me lembra o que eu quero apagar algum dia.
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