domingo, 6 de abril de 2025

Você tem uma semana para aprender a olhar de novo

      Chego antes das oito da manhã e a antessala já está cheia. Pego a senha e, enquanto aguardo ser chamada pela atendente, assisto a um compilado de vídeos de uma senhora de meia-idade ora explicando algo muito importante sobre o órgão que eu pretendo investigar, ora fazendo uma coreografia para uma canção cuja letra parece de autoria de alguma criança.                                                                                 Logo a recepcionista me atende, digita os meus dados, imprime a minha guia de atendimento para eu assinar e me explica a dinâmica da consulta pela qual estou prestes a passar: primeiro um colírio, em seguida um pequeno teste, depois outro colírio e outro teste e, só então, ficarei em frente a mulher dos vídeos da antessala. Não estou ansiosa pelo atendimento, mas receio me atrasar para o trabalho. Explico minha preocupação para a atendente, que providencia uma declaração de comparecimento.           Sigo para outra sala, acompanhada por uma assistente que pinga duas gotas de um líquido viscoso em cada uma das minhas retinas. Devo permanecer com as pálpebras fechadas por cerca de cinco minutos; um alívio não ter que assistir a profusão de cores, estímulos visuais e estética duvidosa dos filmes da antessala. Mas o som continua.

 
    Quando abro os olhos, percebo os detalhes desta outra sala, um papel de parede com nuvens estampadas, um par de mesas pequenas coloridas, com cadeiras infantis e uma estante, também pequena, com livros e uma coleção considerável de gibis, além da tela na parede para a qual estou de frente, que reproduz os mesmos vídeos da recepção. Não há como escapar. 
    A assistente retorna, me direciona para outra sala e encaixa uma espécie de binóculos no meu rosto, então ela começa a mover as lentes e me pede para fixar o olhar na casa de telhado vermelho da paisagem que aparece sob os meus olhos. O desenho embaça ou fica mais nítido à medida que ela move as lentes; a casa aparece ou some à medida que a assistente ajusta o aparelho. O primeiro teste me parece fácil; só tenho que dizer o quanto a casa se aproxima ou se afasta do meu olhar.
    Volto à sala das nuvens, a moça de jaleco avisa que em quinze minutos retornará com o segundo colírio, e eu começo a ficar inquieta com os vídeos repetidos e de gosto questionável. Primeiro, procuro alguma revista para me distrair, mas tudo ao redor está um pouco mais turvo, nenhuma casa para me orientar. O celular na bolsa começa a vibrar, não consigo ler a tela, atendo sem saber quem é.
 
    Do outro lado, ninguém com quem eu tenha intimidade para comentar o estranhamento que é estar sem visão plena em um consultório esquisito. Então atendo como se estivesse na minha sala de trabalho, nenhum comentário sobre os vídeos, o papel de parede, o mobiliário pequeno ou a casa instável. 
    Mais alguns minutos de espera, e duas gotas de um líquido translúcido incomoda os meus olhos pela primeira vez, a atendente me prepara para o desconforto, me dá um lenço de papel e diz que logo passará a sensação ruim. Mais uma vez a assistente me busca e encaixa os mesmos binóculos no meu rosto.
    — Agora, você vai focar no barco.
    Ela anuncia.
 
    Uma paisagem marítima, mínima, aparece sob os meus dois olhos, encontro o barco e sinalizo, perco o barco e exponho. 
    — Agora sim, agora não. Apareceu, mas está embaçado; agora está nítido. A mesma paisagem em diferentes lentes não é a mesma.
    Mais alguns minutos e estou pessoalmente com a mulher dos infinitos vídeos da minha espera, ela é menos simpática fora da tela, mais pragmática até e não parece interessada na história que elaboro para dizer que meus olhos são outros há pelo menos seis meses.
    — Nunca precisei de óculos antes.
    Ela faz uma cara de indiferença.
    — Fui viajar no semestre passado e percebi que não conseguia mais enxergar de longe os painéis de horários de voos.
    Nem me perguntou sobre o destino, se foi de férias, se aproveitei; a moça dos vídeos se interessaria.
 
    Ela me encaminha para um aparelho parecido com o anterior, com mais acessórios, apaga as luzes e ilumina um painel com letras e números. O terceiro teste é parecido com os anteriores, preciso sinalizar qual imagem é mais nítida. Nenhum texto completo, nem frase, nem palavra, nenhuma estatística com os números ou dado econômico, nisso o terceiro teste é o mais frustrante deles. 
    Nem casa, nem barco, tampouco a história da minha visão passada. Letras e números soltos, sem nenhum mar  ou grama que os sustentem. Uma especialista que não se interessa pela minha visão pregressa ou pelo meu roteiro de férias. O holograma da sala de espera não se materializou.
    Só a mulher com olheiras e desinteressada pelo que eu era até entrar na sua sala e não ser capaz de enxergar nitidamente todos os símbolos me atende agora.
 
    Ela prescreve uma receita, explica que terei que usar um colírio por alguns meses e devo fazer óculos com lentes multifocais, me encaminha para a assistente e diz que ela responderá minhas possíveis dúvidas; antes de sair da sala, pergunto:
    — Todas?
    Ela garante que sim.
    A assistente é mais simpática, mas não cabe eu dizer a ela que nunca antes precisei de óculos e que barcos e casas são mais interessantes nessas avaliações. 
    A moça de jaleco me mostra um esquema de como a minha visão funciona agora e de como as lentes a auxiliarão. 
 
    — Eu perdi. 
    Falo resignada. A moça, então, se interessa e quer saber o que desapareceu. Respondo que a minha visão absoluta e ela tenta me consolar, dizendo que o grau é até bastante discreto para a minha idade. Minha idade. Pela primeira vez, um número sobre o mar ou grama; nada de aleatoriedade. Um número que contém alguma coisa, histórias de desmoronamentos e reconstruções; naufrágios e resistências.
    Minha idade. Com todas as experiências e as perdas que começam a anunciar nas duas lentes dos binóculos. 
    Ela ainda explica que terei mais dificuldades na primeira semana, mas que depois já estarei mais segura para usar os óculos. É didática ao demonstrar o funcionamento das lentes, cujo campo de visão é divido em três distâncias; mas menos do que a vendedora da ótica — a ouvinte mais atenta das três.
 
    Antes de sair do consultório, ela repete o prazo de uma semana para eu me adaptar a nova visão. Terei que aprender a enxergar de outro jeito, vou ter que me acostumar a olhar a lua sem chorar para não molhar as lentes. Terei que me acostumar com os números que ora desaparecem, ora se apresentam para explicar uma nova limitação. Minha idade. Uma casa e um barco flutuantes. 
    Que eu não desista de buscar a melhor nitidez das coisas em qualquer idade. Que eu possa aproximar casas e barcos, quando eles começarem a desaparecer. Que eu encontre quem queira saber como eu enxergava antes e que me ajude a olhar com o que eu tenho agora.
 
 

 

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