sábado, 26 de julho de 2025

Apenas um corpo no mar

    Uma mulher se levanta com dificuldade pela manhã. Atravessa o corredor escuro, pelas persianas ainda abaixadas da sala, vai ao banheiro, escova os dentes, lava o rosto e  se senta no vaso sanitário gelado. Quando a pele encosta na louça fria, a face se enruga e ela sussurra algum palavrão. Uma mulher pensa no quão difícil é ser mulher, enquanto esvazia a bexiga. Suas pernas pesam toneladas e ela se locomove lentamente e obstinada. Uma mulher orienta a própria existência como se praticasse um manual de gestos de sobrevivência. 
    Já não está mais na cama, lavou o rosto, escovou os dentes e fez xixi. Pequenas conquistas reverenciadas internamente.
 
    Uma mulher prepara o próprio café e puxa uma cadeira para se sentar, enquanto a água ferve no fogão. Olha para a louça na pia e se lembra da mãe que nunca ia para a cama à noite, antes de deixar a pia vazia e limpa.
    Uma mulher não é a sua mãe, mas se sente uma dona de casa relapsa.
    Depois, esquenta uma xícara de leite, porque a médica sugeriu que ela não tomasse café puro, já que a cafeína dificulta a absorção do ferro. Uma mulher se sente uma companhia mineradora.
 
    Enquanto toma o seu café com leite morno e come o pão com ovos mexidos, calcula o tempo que terá para lavar a louça, varrer a casa e tomar banho antes que o pai chegue com a madrasta. Os dias não têm sido muito favoráveis às visitas, mas eles vêm porque acham que podem ajudá-la a atravessar esse outro corredor escuro. 
    Uma mulher com uma xícara na mão e os lábios sujos de requeijão, olha para o teto da cozinha e pensa o quanto é bom ser amada e o quanto é pesado, às vezes. Encara uma teia de aranha no armário junto ao teto e não sabe se quer desfazer um lar.
    Uma mulher tem muitas decisões antes das oito da manhã e um cansaço descomunal; toda a sua existência tem sido orientada pelos manuais. Antes de se levantar, repete solitária na cozinha:
    — É preciso respirar. É preciso saber respirar. É preciso não afogar agora.
 
    Quando o pai e a madrasta tocam a campainha do apartamento, agora iluminado, ela abre a porta de banho tomado, com os cabelos ainda úmidos e um sorriso, desencadeado pelo manual. Almoçam juntos, ela fala da expectativa para os próximos dias:
    — Agora é só esperar. Não tenho mais o que fazer, senão esperar.
    O pai ouve, sorri, um sorriso que não é de manual, e emenda um assunto sobre alguém por quem ela não se interessa, aliás, poucos interesses ela tem tido ultimamente. Quando alguém pergunta como ela está, quase sempre se lembra de uma irmã do avô, que morava no interior de Minas Gerais, que respondia lacônica à mesma questão:
    — Se véve.  
    Queria só dizer também: 
        — Se vive 
    Embora o pai prossiga com a conversa cotidiana, a madrasta entende a angústia da inevitável espera, se aproxima, segura as suas mãos e, assim como ela, ouve atenta, embora desinteressada, os assuntos do marido.
 
    O três se sentam na sala e para não continuarem o assunto ou ficarem em silêncio, a mulher liga a TV e zapeia os canais. Pula o programa sensacionalista, por causa da violência, que nesses tempos a sensibiliza mais profundamente; pula a novela reprisada, porque não aguenta mais constatar que o galã de outrora é um radical da direita que recentemente despejou uma série de agressões degradantes nas próprias mídias; evita os realities, porque sempre a incomodou a exploração das individualidades encenadas, até que chega a um documentário. Aparece o fundo do mar, a narração é francesa, ela coloca o áudio em português, porque o pai não trouxe os óculos e os três assistem a um modo de vida muito diverso e dificilmente encenado.
    Este é um programa inofensivo para esses dias, ela conclui. O mar azul, a vida misteriosa que habita o universo com o qual eles nunca tiveram alguma intimidade, informações relevantes de vidas que dificilmente encontrão no seu habitat.
 
    Relaxada, a mulher assiste ao documentário, com os pés na mesa de centro e as costas enterradas no macio do sofá. Pela primeira vez nessa semana, ela é capturada por uma narrativa que não é a própria, uma existência que não está à espera de uma nova.
    Na tela, os polvos são descritos como as criaturas mais "inteligentes, adaptáveis e engenhosas da Terra". A beleza das cores, dos oito tentáculos que capturam, ajudam na locomoção, na construção de abrigos, na manipulação de objetos e a escapar de predadores. 
    Uma mulher com o corpo entregue ao sofá de casa, se esquece das visitas, dos manuais, das proibições, da meta de absorção de ferro, de ter que respirar, de não poder se afogar, das teias de aranha sobre os armários, da louça que está sempre em atraso, do corredor escuro que atravessa agora e flutua como um polvo faz na televisão. Tudo é um balé marinho, a vida será para além do que "se véve", quando puder se levantar.
 
    Até que no filme ao qual assistiam, que parecia mais arte do que ciência, aborda a reprodução dos polvos. A fêmea é a única responsável por cuidar dos ovos. Depois de fecundada pelo macho, a fêmea deposita os ovos em um lugar seguro e se retira da sociedade, se afasta de todos os outros polvos para se dedicar às vidas encapsuladas. 
    A informação desinquieta a mulher, até agora tranquila, então ela ergue a coluna para acompanhar o desenvolvimento da narrativa inesperada de uma fêmea que cuida dos ovos e que aos poucos, deixa de se alimentar, de se locomover minimamente, para proteger seus descendentes. A polvo fêmea, que há minutos atrás, se deslocava como uma bailarina dos mares, com leveza, liberdade e coragem, sucumbe ao processo e morre, quando os ovos eclodem.
     O documentário dos polvos na TV, a mulher no sofá com dois ovos no ventre, pensa no próprio destino e começa a chorar. Os pés inchados, a pele do ventre fina e próxima de um limite que ela teme conhecer, as costelas enredadas por dois corpos formados, os pulmões que não alcançam o ar que ela precisa diariamente. Tem medo e preferia ser um cavalo marinho fêmea a ser esse polvo de oito tentáculos que não alcançam nada. O pai pergunta se ela se sente bem, a madrasta entende o medo. Ela limpa as lágrimas e responde um melancólico:
    — Se vive. Mas queria ser cavalo marinho.


 

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