domingo, 13 de julho de 2025

Cada dois em um mesmo sol


  São os mesmos, embora sejam muitos outros. O mesmo sol, mas também, décadas de anos de sóis. Sentados no jardim babélico do prédio simplório, são dois, acompanhados de muitos outros, que os trouxeram até essa calmaria da manhã de inverno num domingo. 
  Ela está vestida com uma malha de tricô verde água e um cardigã de lã vermelho, o que me faz imediatamente lembrar da minha mãe e a sua composição de cores muito expressiva. Ela tem um corpo magro e de baixa estatura, é uma dessas idosas que parece diminuir de volume corporal a cada ano, até um dia desaparecer completamente. 
 
  Está sentada numa cadeira, muito bem posicionada no sol, e tem um ramo de flores secas nas mãos, que ora parece acariciar ora trançar como se dali saísse algo, como se as mãos produzissem um futuro. Ela não está só. Embora sua concentração no que tem nas mãos pareça afastá-la do presente. 
À sua frente, com os joelhos apontados para os da idosa, há um homem adulto, sentado em um degrau de cimento, que separa o jardim da entrada para o prédio. É um homem grande de cabelos pretos, lisos, cujo o corte lembra ao de um menino de onze anos. Seus ombros estão curvados, como se diminuísse a própria altura para se aproximar da velha mulher. É adulto, mas parece filho; e talvez por isso, e pela calça curta, pela camisa de botões e uma franja redonda que cai sobre os seus olhos, seja uma imagem pueril. Ele também tem um ramo seco nas mãos. Tenta imitar os gestos da mulher e estão em silêncio.
 
  São duas cabeças iluminadas pelo sol de julho, em um jardim que eu queria que fosse meu, em um prédio cuja pintura descascada expõe o fenecimento das coisas. São dois corpos próximos e gentis um com o outro, cujos joelhos apontam para um tipo de partilha que é terna e melancólica. Movem as mãos e não se olham, permanecem em um silêncio confortável que só é possível em uma intimidade antiga.
  Não sei como se sentem às dez da manhã de um domingo de inverno. Ele parece triste e ela ausente. Mas não parecem sós, debaixo desse sol que compensa todo o cinza da semana anterior. 
  Certamente esse domingo é único e o mesmo de muitos outros, quando eles tinham mais do que ramos secos nas mãos e menos tempo para o sol da manhã. 
 
  O prédio é baixo, o primeiro andar é no nível da rua,  duas gaiolas em duas janelas de um apartamento remonta a um passado próximo — no qual gaiolas não eram tristes — a fachada rosa desbotada, com o sol, fica mais bonita e ainda tem o jardim que é do prédio, mas que agora é deles dois. 
  O jardim é o menos arrumado possível, é uma profusão de espécies vegetais que se sobrepõem sem nenhuma geometria prévia, são cores, formas e texturas que se misturam; a desordem mais bonita, que também explica o que são as relações familiares. 
  O prédio descascado, com gaiolas na janela no Centro da cidade, o jardim com muro baixo, a placa de propaganda de coxinhas e dois adultos expostos ao sol do inverno parece coisa de um outro tempo.
 
  Ela na cadeira e ele no degrau em um jardim muito acessível, em uma comunicação sem palavras, sem olhares, ao menos no presente. As mãos dela inquietas, os dois com raízes e cores que se embaraçam numa profundidade que ninguém pode ver. 
  Acho que a tristeza nos ombros dele é pela perda iminente, acho que as mãos trabalhadoras dela é pela tentativa de permanência. Talvez ele já lamente a partida marcada dela e ela não autorize a sua maternidade de um homem já crescido. Uma mãe é uma mãe de uma pessoa a quem sempre poderá carregar; um filho cabe sempre no colo de sua mãe.
  Entendo o luto recíproco aos qual os dois estão submetidos nessa manhã tão pacífica e quente.   
 
  Quando ela deixá-lo, ficará o homem de cabelo tigelinha completamente órfão e irremediavelmente condenado à vida adulta. Um adulto que perde os pais, talvez a mãe ainda mais, fica vazio da criança em si. Porque aqueles que o viram sempre filho não estarão mais lá. É triste, bonito e caótico como o jardim no qual eles se fundem agora. Um dia, os joelhos dela não estarão tão voltados aos dele, um dia, as suas mãos serão para sempre quietas.
  A mulher sussurra alguma coisa, ele se abaixa um pouco mais para ouvi-la, depois, se levanta, busca um outro ramo de vegetal no jardim e entrega a ela, que volta os olhos e os trabalhos para a folha seca. 

  Aos domingos, dois quaram ao sol cerrados em si mesmos. Há tanta intimidade nesse desconhecimento. Ela não se lembra, ele a perde um pouco mais. Uma mãe e um filho fechados ao sol e entrelaçados sob  um mesmo solo; é esse o jardim que sempre se refaz. 

 


 

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