domingo, 6 de julho de 2025

Edita pra mim

  Alguém apaga a lata de lixo perto da porta e o maço de cigarro  em cima da mesa, dessa foto, por favor. Obrigada. 
  Edita para mim e tira tudo o que é cotidiano e doméstico, apaga da imagem a pessoa comum, cercada do ordinário e tira as lembranças de um lugar que não existe mais. A lata de lixo azul da casa, que a vizinha da frente deixou quando se mudou e falou que podíamos ficar com ela e o maço de cigarro da tia que morreu faz tempo. Apaga.
 
  Tem como editar e tirar essas pessoas do Arco do Triunfo, atrás de mim? Se alguém conseguir, agradeço.
  Me deixa em Paris sem transeuntes, apaga a bolsa neon do turista americano, o vendedor de livros usados, carregando sua mercadoria lá longe, os monges budistas de mantos terrosos, os turistas ajoelhados com as câmeras contra a luz, buscando o ângulo indelével da cidade que nunca está vazia. 
 
  Tem como apagar esse cachorro de rua que está na porta da igreja no meu casamento? É a foto favorita do meu álbum, mas com esse cachorro aí...
  Edita para mim e apaga o traço mais autêntico de qualquer cidade brasileira que é o cachorro caramelo religioso. Tem como deixar esse casamento imaculado, seguro de participação externa, um casamento de luxo, com equipe de seguranças, produtores de imagens, códigos nos convites e somente o ensaiado?
 
  Edita para mim e tira o meu ex da foto, é esse alto de camiseta vermelha. É a única foto que eu tenho da família inteira no último ano do meu pai ainda vivo e eu queria guardar.
  Apaga as decepções, a desilusão do sonho de uma vida partilhada que não se concretizou. Apaga as mentiras, as traições, a indiferença e a irresponsabilidade emocional. Apaga as promessas, as noites estreladas, o ombro no qual eu chorei quando soube que o meu pai estava doente, a mão que se estendeu quando eu fui demitida do trabalho, desligada do projeto e reprovada no concurso. 
  Tira o homem de camiseta vermelha que dirigiu apavorado por 600 quilômetros, quando eu disse que precisava. Apaga a minha dor e o abismo em que eu mergulhei, depois de conhecer a altura de um sentimento para o qual nunca se está preparada? Tem como editar e apagar a pessoa mais alta da foto e todas as marcas que ainda estarão aqui depois da edição?
 
  Edita pra mim e apaga a sonda do nariz do meu bebê? É a foto que restou de uma vida brevíssima do amor com o qual eu sonhei longamente durante a minha. Queria ter uma foto sem dor, sem as lembranças de um parto sem o cume do choro do filho, os dias de braços vazios e as noites vigiando o sono tão vulnerável que eu trouxe à luz e não pude mantê-lo mais acordado.
  Apaga toda a dor das semanas seguintes ao nosso primeiro olhar que não aconteceu no centro cirúrgico, só depois, atrás de um plástico e que mesmo assim me atravessa até hoje e o desespero da ausência de batimentos cardíacos trinta dias depois do nosso primeiro encontro. Reconstrói uma imagem que não aconteceu; meu filho sem sonda, um recém-nascido com futuro.   
 
  Edita pra mim e apaga a moça loira de cabelos longos da foto? Era minha amiga, mas agora é bolsonarista. 
  Apaga a desconfiança inicial, o susto, a desagradável constatação de um afastamento tão profundo, o apoio público dela aos discursos, às violências travestidas de cristianismo, apaga a minha vergonha de não tê-la conhecido antes. 
  Edita e retira dessa foto todos os sofrimentos que ela me ajudou a atravessar, os meus sonhos que ela incentivou, a generosidade do teto, do banho, dos livros e cópias que ela dividiu comigo. Apaga a minha admiração pelas suas renúncias e perseveranças. 
 
  Edita pra eles e me apaga das memórias dos outros com os quais eu rompi? 
  Quem me editaria na foto que não deveria estar mais? Que partes de mim deveriam ser apagadas e quais outras iluminadas pelo pincel de pixels do editor disponível? 
  Quais os álbuns que eu não frequentarei mais, inteira ou fragmentada? Meus ombros largos, meus braços brancos com pintas, minhas mãos de dedos longos e unhas quase sempre esmaltadas, meus dentes proeminentes e a ponta do meu nariz arredondada. 
   Edita pra mim essa memória e não apaga nada? Edita e realça os detalhes ordinários, as sardas, as cicatrizes, as calçadas acidentadas, as paredes descascadas, os copos de plástico, os bolos sem confeitos, os amores que passaram, as amigas para as quais nunca mais ligamos para desejar um feliz aniversário, os filhos que não pudemos segurar,  os cães de rua, os noivos da classe trabalhadora, as heranças baratas dos vizinhos. Não edita pra mim e não paga.

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