quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Como ter que precisar do amarelo

  Desde a sua chegada, ele esteve rodeado por este halo mais amarelo de pelos ao redor do rosto, meu primeiro gato amarelo; o único. Mas, na manhã quente do domingo, o gato parece ainda mais amarelo; sob o sol, seu rosto é mais dourado do que de costume. Tenho achado que envelhecer o torna mais amarelo, sua tonalidade é cada vez mais vívida e forte. Mais amarelo do que eu poderia imaginar, mais amado do que eu poderia prever. Vê-lo assumir mais e mais a sua cor tem me feito desejar isto: ser mais eu a cada passagem de dia.
  Quando ele veio morar aqui eu o aceitei com tudo o que era dele, pelos muito amarelos e impossibilidades que se desmanchavam. Quase não ouvia a minha voz por muitos minutos, agora, já se senta aos meus pés e parece carecer dela para só, então, sair e ganhar a rua; dormia a cada dia em um lugar diferente, eu nunca sabia onde encontrá-lo, agora escolheu um lugar na minha cama, do qual só sai, quando o meu despertador me levanta. Passava dias sem voltar para casa e eu sem ter onde procurá-lo, quando eu me resignava em saudade e me prostrava no canto da sala, onde eu costumo chorar as perdas, ele aparecia, sem pedir desculpas e voltava à rotina de muitos dias passados. Mas, agora, todo o final do dia ele pontualmente se apresenta. Fomos nos adaptando ao que podíamos um do outro.

  Quando a sua amarelada figura passou a dividir os seus dias comigo, achei que não duraríamos; eu era um lar provisório, ele era um abandonado gato doméstico. Eu já tinha a experiência de acolher e libertar e ele  já sabia sobre casas que não duravam; seríamos passagem, mas fomos cravando, aos poucos, nossas unhas afiadas nas provisoriedades um do outro.
  E, agora, olhando para a infinitude amarela no batente da janela, penso que isto deve ser um tipo de amor que, de verdade, dura; começa sem saber o que é, senta-se em um banco, esperando a senha e nunca mais se levanta dali, porque é macio e a campainha não faz mais sentido. Fomos nos entrelaçando; silenciosos, sem saber que havia um cordão.

  O domingo é ainda um começo e o gato quer a minha história. Logo ele desce do batente e se aninha sobre os meus pés com chinelos de borracha de um amarelo ordinário, que em nada se parece com o amarelo que é ele. Tento me lembrar do sonho da última noite, porque esta é a partilha recorrente: eu conto a ele os meus sonhos e ele os abandona pela cidade.
- Espera que eu vou tentar me lembrar. Nossa...espera, porque eu não sei se é sonho ou o filme de ontem à noite. É sonho...é filme...não, é sonho. Ou será algum trecho do livro que eu ando lendo? É sonho... Vou contar a cena que durou e que parece ser a única que importa.
  Resumo, o quanto posso,  os meus sonhos, porque ele aprendeu a ouvir, mas não tem paciência para  minutos que escorram muito devagar.
 - Uma menina, talvez indígena, parecia esperar por alguém, chegam dois homens adultos, um homem branco já mais velho, com um rosto amoroso, sabe? Porque a menina sorriu para ele e eu senti que também gostava dele, embora eu só assistisse a tudo. Ele parecia voltar de uma viagem e era ele a espera dela, sabe? O outro homem não falava nada, era mais jovem e ficava meio distante, meio coadjuvante, entende? Logo chegaram outras pessoas, enquanto o velho afetuoso tirava da sua bolsa uma folha, bem bonita, de alguma árvore de um lugar distante e dava à menina. E aí, Gato, o estranhamento: eu tinha a certeza que a menina iria gostar, todos ao redor pareciam saber o mesmo e ela, embora sorrisse, parecia esperar por outra coisa, tinha uma urgência que a folha colorida não alcançava. E eu ficava um pouco solidária com a desilusão dela, mas também com raiva  pelo regalo não tê-la comovido. Depois, Gato, a história continuou e eu ficava com a folha na mão sem saber o que fazer com ela. Gato, eu acho que era a menina.

  Fitamos, os dois, um livro de botânica em cima da mesa de centro e passamos alguns minutos em silêncio. Talvez meu sonho tenha sido recortado dali. Meu sonho amarelo no tapete da sala, na manhã de domingo, o gato o recolhe e avança para rua, vai espalhar pela cidade o sonho de um presente que eu deveria amar e não amo. Vai deixar cair pela cidade a minha surpresa em não amar o que eu deveria e não sei como.
  O gato desce pela varanda num tempo mais largo e preguiçoso; já não tem a elegância esperta da sua experiência felina; o gato muito amarelo, mais amarelo a cada dia, faz despedidas e eu nem sei se ele sabe. É o seu último setembro, eles dizem, achavam que agosto era seu último mês e não foi. O amarelo bichano que achei que ficasse pouco tempo, não foi nunca mais embora; é assim que o seu amarelo se reforça: enganando previsões.

  Quando o veterinário diz que temos pouco tempo, que eu devo mantê-lo mais em casa e perto de mim, ele só enxerga aquilo que não teremos mais. Mas eu já vi, conheço e, ainda, tenho tudo o que tivemos. Não posso negar a cidade a ele; como não posso me negar a não amar um folha, que eu deveria gostar, mas não consigo.
  O sol de domingo é quente, os pelos do gato estão mais amarelos a cada dia e eu não terei a quem contar os meus sonhos nas manhãs de sol. É só o início de setembro e eu não sei me despedir de nada; embora siga sempre depois de cada partida.

  Tenho que emoldurar as lágrimas dos últimos dias e o seu mais forte amarelo comigo, ainda que ele precise ir embora. O gato me deu a mim e o deu completamente a si, lição maior dos mundos, inscrição pregada em muros . A solitude plena de nunca mais ser sozinha; não depois do gato amarelo. Todos os dias, antes dele, eram meus, todos os depois, continuarão sendo, mas com um recorte amarelo de saudade.
  Com o amarelo do qual eu nunca me esqueço, aprendo as provisoriedades que duram. Vou ter que aprender a sonhar e eu mesma espalhar os meus sonhos pela cidade; aprendi a precisar de um amarelo que um dia se apagará; ainda que em mim continue iluminado cada espaço, sem nunca um fim.




2 comentários:

Unknown disse...

Obrigado, Amanda, pela sensibilidade e carinho na abordagem de um tema tão importante e, ao mesmo tempo, delicado para todos nós. Belo texto!

Amanda Machado disse...

Wallace querido.
sou eu quem agradeço pela sua leitura tão gentil. Obrigada! Beijos