Não conheço sua voz que não seja falando: arroz de pato.
Mas acho que já a vi tanto, que já não posso mais não saber dela. Mesmo que eu saiba errado, só posso saber; o não-saber já é impossível.
Quando falou no arroz de pato eu passava por ela e tentava adivinhar a sua idade; chega um tempo em que mais jovens e mais velhos tem o mesmo peso em recorrência. Antes, eram mais pessoas que eu queria saber a idade e eram mais velhas do que eu, agora não, tenho uma idade que parece estar no meio do caminho para algum lugar.
Eu olhava para o seu punho com pulseiras de miçangas coloridas e a achava bem mais jovem do que eu, mas foi ela dizer: arroz de pato e eu já adicionei dez anos à minha primeira suposição.
Não foi exatamente o arroz que a envelheceu, mas o jeito, a propriedade com a qual falava do arroz. Pareceu uma especialista, uma chefe de cozinha, alguém a quem se dessem um pato vivo e quilos de arroz com casca, saberia entregar uma arroz de pato. Eu não sabia nem o que era um arroz de pato, por isso achei que não pudesse ser tão mais velha do que ela.
Depois disso, em quase todos os nossos encontros eu passei a pensar no arroz.
Não sei a quanto tempo a tenho visto, mas certamente há mais de cinco anos, não sei se seis ou dez, porque quando corro o tempo se desloca e não sei mais alcançá-lo. Durante esse tempo, em que eu a tenho visto, ela passou por demasiadas mudanças. Possivelmente, eu também, mas não consigo me ver como a vejo.
Das mudanças mais impactantes foi a silhueta corporal. Acompanhei a sua quase brutal perda de massa. Reparava nas roupas que eram as mesmas, mas ficavam, a cada semana, maiores, mais largas, mais distantes de um número ideal para ela. O rosto ia afinando, os olhos pareceram maiores, as sobrancelhas mais espessas e a sua arcada dentária mais proeminente; os dentes superiores que sempre foram aparentes, saltavam do seu perfil cada vez mais. Eu me assustei com a moça tão magra, cujos ossos do punho não seguravam sequer uma pulseira, da sua dúzia colorida.
Mas eu ainda pensava no arroz, o que terá sido do arroz de pato? Não faz mais? Restrição de carboidratos?
Depois, voltou a ganhar mais formas; também não sei quanto tempo levou, mas eu vi suas roupas voltando a se adequarem à sua cintura e, mais, agora estão apertadas, a blusa de lã amarela já começa a subir enquanto ela anda. O arroz de pato voltou, é o meu pensamento recorrente.
O cabelo dela também mudou muitíssimo, já foi longo e liso, na altura do ombro e ondulado, depois bem curto e, agora, volta a crescer, já aparece abaixo da orelha e é bastante encaracolado. É incrível o quanto alguém parece outro, por um corte de cabelo mais ousado. Ela passava por mim e eu sentia uma ligeira diferença, mais alguns passos e eu conseguia identificar, então, eu me virava para trás para confirmar a mudança.
Nestes tempos em que temos nos visto, o meu cabelo não mudou quase nada. Por isso acho, de novo, que é o meu tempo sentado na calçada, não muda muito; não mudo quase nada. Qual será o meu medo? Ou segurança demais no que já tenho?
Os pratos de arroz dela são bem mais dinâmicos que os meus; ela entrega dez e eu ainda procuro a receita.
Eu não sei o número que ela veste, a cor favorita dela e nunca a vi de vestido ou saia. Não sei se usou traje branco na primeira comunhão ou se apresentou-se ao sacramento. Não sei quantas calças jeans ela já enterrou ou de quantos tênis brancos ela se despediu. Mas, desde os nossos encontros, é uma mesma variação de roupas, dez peças, visíveis, no máximo. Eu também não vario muito, porque depois da corrida, chego em casa e lavo camiseta e calça. Uso há anos a mesma cor de calça quando nos encontramos, talvez ela ache que é a mesma desde de sempre. Não há nada de estranho nessa repetição, acho inclusive, confortável reconhecê-la de bastante longe pelas cores das blusas.
Quantos grãos de arroz caíram naquelas roupas? É inevitável que o arroz atravesse quase todo o pensamento que desenho dela.
Eu não sei se ela tem mãe, pai, filhos, se a mulher com quem falava do arroz de pato tem algum parentesco com ela, aliás, elas estão quase sempre juntas. Mas lembro-me de uma vez em que vi sendo puxada pelo braço, por um homem. Ele gritava com ela, enquanto ela resistia e escondia o rosto. Estava do outro lado da rua e pela primeira vez não cruzamos os nossos olhares.
O homem a puxava pelo braço. Pai, amante, marido, irmão, tio, primo, cunhado ou até vizinho; podia ser qualquer um. Há homens que ainda tomam as mulheres que conhecem ou não, como objetos de uso, qualquer mulher é menor do que eles.
Foi a primeira vez, também, que não pude pensar no arroz, ao menos, não na hora. Alguém ameaçou chamar a polícia, o homem soltou o braço dela e fugiu. Voltei para casa e ela seguiu a avenida sozinha, de novo, com os braços para ela. Ainda que na semana seguinte eu tenha feito uma receita de risoto por dia, só agora acho que talvez não tenha sido coincidência.
Eu penso tantas coisas sobre ela, mas não sei nada. Estou apartada da ilha que ela é e flutuo entre as imagens que atribuo ao arquipélago do qual ela faz parte. Penso tanto nela e sobre a sua vida instalada na minha, mesmo sem querer, e será que ela também pensa em mim, sabe de mim como eu sei dela? Sem saber nada.
Eu corro, ela escorre o arroz, de pato eu não sei se sempre. Também pareço correr às vezes, mas estou mesmo parada, noutras corro, enquanto durmo. Nada é exatamente a leitura que fazemos. Somos leitores muito cegos, às vezes românticos ou pragmáticos demais. Nossa leitura não tem salvação, tampouco temos nós, sem leitura alguma.
Arroz de pato, amanhã pela primeira vez eu farei. Comprei os ingredientes hoje, ao final da tarde. Não trouxe um pato vivo para casa, não poderia.
O que nos separava era o arroz de pato, amanhã não separará mais. Eu não sei quem ela é, mas quando a vejo é como se eu me soubesse.
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