domingo, 5 de outubro de 2025

A paciência navega em um barco pequeno e instável

  
    Um homem caminha em direção contrária a minha com uma cadeira de praia colorida embaixo do braço, em plena avenida urbana — enquanto eu ajeito o meu boné — passamos um pelo outro e sorrimos.  Não sei o seu nome, tampouco ele o meu, mas somos conhecidos antigos, que partilham comentários aleatórios quando os olhares se cruzam. Geralmente ele está sentado na cadeira, enquanto eu passo, correndo ou ainda caminhando. Sempre há um desejo ou recomendação, que desaparece no ar, enquanto eu passo: "boa manhã", "bons caminhos", "cuidado com os carros", "cuidado com o sol, hoje está mais quente". E às vezes um encorajamento: "continue".
 
  A cadeira dele na calçada aos finais de semana, me conforta; a cadeira colorida dele sob o sol entre as frestas dos prédios, me lembra que o calor e a luz são possíveis, ainda que a previsão seja a de tempo encoberto. É o mesmo homem de jeans e bolsa atravessada nos ombros, do outro lado da rua, no ponto de ônibus durante a semana, mas também é outro, sentando na cadeira de praia. Devo ser a mesma e outra de sapato e pasta e também de tênis e boné. Mas, certamente, mais entregues nas nossas versões de fim de semana. 
    Se preciso mudar de horário, por alguns dias ou semanas, quando nos reencontramos, ele me pergunta, enquanto empenho força no passo, se tudo continua bem. Acho que sente a minha falta, não dá tempo de dizer a ele que também senti a sua, mas explico, entre uma passada e outra, que permaneço. 
 
    Hoje, quando nos encontramos,  ele confirma o meu itinerário, mas não fala os nomes das ruas ou números em quilômetros ou minutos; só simula meu caminho com os dedos, apontando a direção e eu balanço a cabeça. Para não deixar dúvidas, eu busco um ponto de referência conhecido e ele se espanta.
    — Mas porquê tão longe? 
    Também não sei.  
    Pergunto como ele está e ele responde que está tudo bem, se curando de uma virose, enquanto troca a cadeira colorida de braço.
    — É preciso ter paciência. 
    Ele fala em um tom que parece enigmático, quando relembro.
    — Mas vá lá não quero atrapalhar seu exercício.
 
    Nos despedimos. E amanhã, se nos vermos, não seremos os mesmos da cadeira colorida, sob o sol e a do boné verde e tênis.
    Paciência. Foi o que ele disse. Primeiro, pensei que se referia à própria recuperação da virose. Depois, penso que talvez ele se referisse à cadeira de praia, à busca pelo sol, aos passos longínquos que eu não soube explicar, mas sorri.
    Paciência em sermos outros na segunda-feira. Paciência pela espera do fim de semana, pelos cumprimentos aos desconhecidos, pelas solidões partilhadas e, por isso, menos sozinhas.
    Olho para o aplicativo e tenho um novo recorde, mais passos por minuto, mais distâncias percorridas; isso também precisou de paciência. 
      
     Temos que nos sentar em nossas embarcações precárias e remarmos. Penso, enquanto dobro a última esquina, antes de chegar em casa. Ele tem que esperar que o próprio sistema imunológico prepare o seu corpo para ser saudável de novo. Eu tenho que esperar pelas incontáveis esquinas, pelos solados gastos, por algo que eu não sei o que é, mas me move.
    Temos que nos segurar para não viramos com o pequeno barco; precisaremos nos entregar à sorte sobre as ondas, quando perdermos os remos. Paciência navegante, paciência capitã e tripulante.
 
    Mas paciente como quem? Como a testemunha de Jeová com vestido, maquiagem, cabelos escovados e pasta aos domingos de manhã, batendo em portas que quase nunca se abrem? Ou como o dentista de canal, que tem um canteiro de obras de quatro por dois milímetros para reparar uma fratura? 
    Paciente como um artista mambembe, sem público, sem cachê, sem fama, ainda sem aplausos? Paciente como a mãe cujo diagnóstico do filho atípico a acompanha nas idas ao berço, cadeira de amamentar, banheira e trocador?
 
    O homem da cadeira colorida de praia, aos domingos, tem o mesmo desafio do homem de jeans e bolsa trespassada no ponto de ônibus durante a semana. Meus passos não se limitam aos pares de tênis que eu já gastei durante a última década. 
    A paciência navega em um barco pequeno e instável, do qual não podemos saltar sem nos afogarmos no arrependimento.  Às vezes turbulência, outras calmaria. Do pequeno barco, a paisagem, às vezes, é bonita de fazer chorar, noutras é aflitiva, com a água invadindo o piso. 
    —É preciso ter paciência.
    Ele disse. Só não sei como ele navegava hoje, quando nos encontramos.
 
 

 

domingo, 7 de setembro de 2025

Arqueologia do invisível insistente

    Meia parede queimada, dezenas de bitucas de cigarro, uma flor de plástico muito pequena e amassada, pendurada com um fio amarelo na grade de ferro; mais nada. Uma mulher morou aqui. Uma mulher teve um fragmento da sua biografia atada à essa calçada e há restos dela que ainda não foram apagados. 
    O que antes era um pote de água e outro de ração na porta de entrada, uma lona preta, com emendas de dois lados, janelas e portas sem molduras e uma cadela de rua, cuidada e vista pela humanidade, sempre à espreita ao lado de uma cabana, que por duas semanas, desafiou a ordem da esquina, agora é só isso.
 
    Ela não está mais lá, mas é como se estivesse. O fogo apagado, os lábios que gastaram tantos cigarros, um par de canelas finas que um dia eu vi de relance, a flor, a coragem e o frio; ela ainda continua lá. 
 
    Na primeira vez em que eu vi a moradia precária, bem ao lado do casarão desocupado, instalada na esquina do bairro de classe média, achei que não durasse um dia. O colchão, a casa, uma pessoa a quem eu nunca vi, ocupando uma parte importante da esquina, detendo transeuntes, se impondo como um obstáculo sutil das urgências hodiernas e, principalmente,  exibindo a indefinição da vida. Um amargo lar, sem placas com frases felizes, olho grego na porta, tapete na entrada, sem a proteção das portas de madeira, portões de ferro ou câmeras. Uma casa cujas paredes se dobram com o vento, uma moradia que escorre pela calçada, na esquina, na dobra entre as duas ruas mais domésticas do bairro. 
      Na segunda vez em que eu vi a lona hasteada e a cadela guardiã da frágil casa, me surpreendi com a passividade dos vizinhos, que acolheram o animal e não expulsaram a sua dona. Um pote de ração e outro com água, foram os primeiros presentes de boas-vindas à moradora.  Aos poucos, vi agasalhos e cobertores empilhados e a calçada completamente tomada pela mulher de canelas finas e desabrigo ocultado pela lona.
    Na terceira vez,  me acostumei a descer da calçada e a procurar alguém a quem cumprimentar na nova moradia.
 
    O que sei sobre ela é quase nada, mas tudo nela me captura, talvez porque somos mulheres e porque temos nossos desamparos. Antes, eu a vi dividindo a varanda do casarão com o homem que continua lá, dono de um espaço maior, mais alto e menos desprotegido. Talvez tenha sido um rompimento romântico ou a ruptura de uma sociedade; talvez os dois. E em ambas as dissoluções, ela é quem ficou ainda mais desfavorecida. Penso em tudo o que ela perdeu com essa separação: o teto, as grades, o piso acima da rua, as vasilhas, os cobertores e a parca, mas ainda maior, privacidade da varanda elevada. Agora é o chão, ao alcance dos pés, mãos vassouras e armas alheias. Mas também penso no que ela deve ter mantido: suas vontades, seu sono, sua cadela, sua vida sem as intervenções de um homem que ocupou uma varanda e a deixou fora dela.
 
    Foram semanas de uma vida mais ou menos devassada, a qual eu assisti com ternura e muitas interrogações: como ser mulher e viver na rua? Como fazer com a delicada higiene pessoal? E o mal-estar e o sexo que sangra todo mês? Como dormir uma noite inteira com o barulho dos carros, o frio de agosto e o medo dos homens? Como viver sem privacidade e ter a vida tão lançada às ruas? O que ela teve? O que perdeu ao vir? O que ela nunca teve? O que ela ganhou ao assumir a precariedade do lar e ter a sua vulnerabilidade tão visível?
 
    Caminho todos os dias por alguma calçada ocupada por um tipo de lar. Caminho todos dias por alguma rua em que uma casa instável abriga alguma mulher cujo lar não é privado ou seguro. 
    Mas também caminho com os meus próprios abandonos e instabilidades sem nome. 
    Atravesso esquinas onde moram liberdades e sobrevivências as quais não cabem num apartamento de dois quartos, com portaria e interfone. Passeio por ruas com as minhas próprias escolhas e a conquista lenta da coragem pela minha vulnerabilidade exposta.
 
    Anteontem eu a ouvi cantarolar uma música muito popular "eu, você, nós dois e uma casinha", achei inusitado e triste. Ontem pela manhã, quando passei, a cachorra dormia, ao lado da lona estendida. Mas, no final do dia, nada mais, além dos cigarros terminados, da fogueira apagada e da resistente flor. 
    Um par de canelas finas que foi para outro lugar com suas dores, suas coisas, seu animal de estimação, suas ausências, suas alegrias, suas sujeições e emancipações. Uma casa, que pode ser em qualquer lugar, uma mulher e as injustiças às quais ela contorna com fogo e música.
 

 

domingo, 24 de agosto de 2025

Quantas janelas terei que descobrir para que eu conheça o voar?

    Quantos poemas faltam para que eu descubra a palavra exata? Quantos versos, estrofes, rimas ou versos livres eu terei que alcançar para encontrar o nome do que eu sinto? 
    Por quantas líricas terei que esperar para finalmente eu ser capaz de chamar?
    Quantos bem-casados ainda terei que guardar na bolsa e comer na manhã do dia seguinte para que as minhas amigas encontrem a felicidade? E se ela não usar véu? E se ela estiver de chinelos, atravessando a rua para levar o lixo até a calçada, antes do caminhão passar? E se ela usar mochila e sapatos para neve? 

    Quantos pedidos de casamento terei que negar, por quantos ainda terei que esperar, qual eu devo consentir para eu ser verdadeiramente aceita? 
    Por quantas sessões de análise terei que passar até ser estável? Quantos Freuds, Lacans, Kleins, Jungs precisarão ser lidos para resolverem as minhas questões? Quais os traumas eu ainda não sei? 
    Quantas senhas eu terei que memorizar até a minha aposentadoria? E quando eu não for mais capaz de me lembrar, quem digitará o meu CPF para a caixa do supermercado? 
 
    De quantas tristezas eu terei que me levantar até amadurecer? Quantas ainda serão capazes de me lançarem ao chão?  Poderei ser grata a todas, depois do entendimento? Serei capaz de perdoar o meu próprio coração e meus joelhos ralados?
    Quantas voltas no quarteirão eu terei que andar para que eu encontre a paz antes da paz? 
    Quantas alegrias preencherão a minha saudade? Quantas saudades constroem uma biografia? As ausências que não são saudades se tornam fendas ou nada?
    Quantos muros eu terei que construir para me proteger? De quantos eu terei que desistir para não me invisibilizar?   
    Quantas paixões farão meus olhos mais brilhantes? Quantas me deixarão insone, sem apetite e apartada do solo?
    Quantas opiniões terei que ignorar até eu assumir a minha liberdade? Que não é leve, tampouco plena, mas é minha. Quantos olhares eu terei que preterir para que não seja o que eles querem?
 
 Um mundo se desfaz toda vez que se toma uma decisão; um mundo novo acontece depois daquele outro
desmoronado. 
    Um solo se esfacela sob os pés, toda vez que nos omitimos de uma decisão; um mundo se deteriora em nódoa e naftalina quando insistimos em mantê-lo intocado. 
 
    Quantas flores antes do meu obituário? Quantos elegantes vegetais serão sacrificados para esconderem a minha fealdade? Quantos pastos, quantas matas precisarão ser devastados para que os nossos pulmões ganhem alguma importância?
    Quantos destinos ainda vamos atravessar? Quantos confirmaremos? Quais abalaremos? Quantos universos conheceremos até sermos capazes de contarmos sobre o nosso?  
 
    Um instante acaba antes de estarmos verdadeiramente neles. Tudo é passado. Esse domingo já estará longe quando eu terminar essa carta. 
    Uma pessoa nos abandona antes de conhecermos completamente suas intenções, seus gostos, suas feridas, seus sonhos, as ruas que errou, os relógios que perdeu. Uma pessoa se apresenta e começamos tudo de novo, esperando sermos outros, com novos erros, mas os equívocos se repetem, repetem, repetem até sermos curadas. 
 
    Quantas orações para sermos salvas do engano da grinalda, das flores e da proteção dos muros? Quantas rezas até sermos críveis?            
    Quantos punhos teremos que erguer para não sermos banidas nem com socos nem com chistes? Quanta doçura é preciso estocar para que a minha negativa não seja uma sentença perigosa?    
    Quantos gritos até sermos ouvidas? Quanta poesia até sermos genuinamente lidas? 
    Quantas janelas terei que descobrir para que eu conheça o que é voar sem voltar para me explicar?
     


 

domingo, 10 de agosto de 2025

O avarandado amor

    Eu penso numa imagem com a qual eu queria te presentear: uma casa com paredes brancas e meio muro azul. Uma infância que não fosse órfã, mas comum. Com as dores inerentes a toda infância, nenhuma além do esperado. Uma adolescência que não fosse definitiva, mas ponte.
    Uma vida adulta mais simples, sem tantas decisões que a partisse e desilusões que a alcançassem. 

    Penso, sobretudo, numa varanda. Com a intimidade resguardada por um retângulo aprazível, entre folhas, flores e cadeiras azuis. Um bebedouro para os pássaros, uma almofada bordada pela tia Sônia, tapete de sisal e uma mesa baixa para colocar a xícara, os óculos, os livros. 
    Eu queria te dar essa varanda para que você respirasse, para que você olhasse para o céu em segurança, sentisse o vento e os raios solares sem pressa. 
 
    Eu só saí hoje porque precisava buscar alguma coisa para te dar. Não sabia o quê nem quanto ou onde exatamente buscar, mas algo que alcançasse e consolasse a suas faltas. Especialmente as dos últimos dias. Aquelas fissuras novas instaladas que ninguém vê. 
    Queria trazer uma imagem para que você voltasse acreditar, uma fotografia de um lugar ainda desconhecido, mas familiar nos seus sonhos. Queria trazer seu desejo de volta.
     Fui à rua para trazer o que te resgatasse, algo que pudesse sustentar, ao menos, os seus próximos dias.
    Então, eu encontrei um homem de calça de moletom cinza e casaco de camurça marrom, com cabelos brancos e postura sutilmente curvada, que me lembrou o nosso avô, nos últimos dias dele. Acompanhei com o olhar até onde pude, com a esperança de que ele me levasse até à imagem. Mas ele andava muito mais lento do que eu podia. Virei a esquina e não tenho a imagem.
    Pensei que levá-lo comigo não seria o suficiente para salvá-la e, talvez, a deixasse mais triste e profundamente melancólica. Embora eu tenha gostado de vê-lo. 
 
    Na outra rua, em frente a um bar com torcedores uniformizados, espalhados entre as mesas de plástico amarelas, vi bandeiras, olhos brilhantes e tensões infantis em homens adultos. Gritos, explosões e, novamente, silêncio. Desamparo e euforia. Não sei se gosta de futebol, nunca te ouvir falar sobre partida alguma, astros, camisas e brasões, então não levei para casa.
    Poucos metros à frente do bar, uma casa antiga e um copo descartável, encaixado nas grades da janela doméstica. Era inusitada e também familiar a imagem, mas deixei onde ela estava, junto com o copo e um dedo de refrigerante ainda dentro. Para mim, bastaria para vencer a semana, mas não acho que era o suficiente para você.
 
    Depois, encontrei um grupo de pessoas, carregando gabaritos; garrafas de água mineral, quase vazias e barras de chocolate, quase inteiras, saindo da prova de algum concurso, que também um dia fizemos. Alguns cenhos franzidos e lábios cerrados de tensão passaram por mim e alguns ombros altos e cabeças erguidas também me encontraram. O que será que pensam? Talvez, como nós um dia, que a aprovação aliviaria todas as tensões, os medos, as insatisfações e incertezas. Tive pena, mas lembrei de nós. 
    Também não trouxe, porque não sei se é uma imagem feliz para você. Acho que tudo me alegra e, por isso, tenho dificuldades em estabelecer o ideal presente.
 
    Um cachorro caramelo me seguiu e embora eu tenha tentado explicar que eu não era a sua dona e insistido para que ele procurasse outras pernas, acabei por atravessá-lo por várias ruas, procurá-lo, esperá-lo e indicar os caminhos mais seguros, até me cansar da missão involuntária, enganá-lo em uma esquina próxima de casa. E desaparecer.     
     Sabe, talvez eu tenha feito isso, várias vezes, com humanos.
    Quis contar isso para você, quis perguntar isso para você: eu já me responsabilizei sem amar? Eu já me comprometi com quem insistiu em me seguir? Mas não acho que me ouviria, como eu preciso ser escutada. Não agora. Então também me esqueci do caramelo. 
 
    Andei por uma hora e já escurecia, quando vi uma árvore alta de flores avermelhadas, em frente à mata que cerca o morro, mas já estava escuro e eu não conseguirei descrever a cor da folhagem, embora possa afirmar, com toda certeza, que eram bonitas. Olhei profundamente para a imagem e pensei que no escuro também há beleza. Nada acabado. As folhas que iluminam o abismo. Um presente em ruínas, uma certeza sem luz. Por último, pisei em um sol amarelo, pintado na calçada perto de casa há algumas semanas. É gigante, engoliu o meu pé, mas também não é o presente que eu buscava.
    Eu saí para te trazer uma casa de paredes brancas com meio muro pintado de azul e uma varanda, mas ainda não encontrei. Quero salvá-la, mas não sei se posso. Por isso ando e faço promessas de varandas.

 


 

sábado, 26 de julho de 2025

Apenas um corpo no mar

    Uma mulher se levanta com dificuldade pela manhã. Atravessa o corredor escuro, pelas persianas ainda abaixadas da sala, vai ao banheiro, escova os dentes, lava o rosto e  se senta no vaso sanitário gelado. Quando a pele encosta na louça fria, a face se enruga e ela sussurra algum palavrão. Uma mulher pensa no quão difícil é ser mulher, enquanto esvazia a bexiga. Suas pernas pesam toneladas e ela se locomove lentamente e obstinada. Uma mulher orienta a própria existência como se praticasse um manual de gestos de sobrevivência. 
    Já não está mais na cama, lavou o rosto, escovou os dentes e fez xixi. Pequenas conquistas reverenciadas internamente.
 
    Uma mulher prepara o próprio café e puxa uma cadeira para se sentar, enquanto a água ferve no fogão. Olha para a louça na pia e se lembra da mãe que nunca ia para a cama à noite, antes de deixar a pia vazia e limpa.
    Uma mulher não é a sua mãe, mas se sente uma dona de casa relapsa.
    Depois, esquenta uma xícara de leite, porque a médica sugeriu que ela não tomasse café puro, já que a cafeína dificulta a absorção do ferro. Uma mulher se sente uma companhia mineradora.
 
    Enquanto toma o seu café com leite morno e come o pão com ovos mexidos, calcula o tempo que terá para lavar a louça, varrer a casa e tomar banho antes que o pai chegue com a madrasta. Os dias não têm sido muito favoráveis às visitas, mas eles vêm porque acham que podem ajudá-la a atravessar esse outro corredor escuro. 
    Uma mulher com uma xícara na mão e os lábios sujos de requeijão, olha para o teto da cozinha e pensa o quanto é bom ser amada e o quanto é pesado, às vezes. Encara uma teia de aranha no armário junto ao teto e não sabe se quer desfazer um lar.
    Uma mulher tem muitas decisões antes das oito da manhã e um cansaço descomunal; toda a sua existência tem sido orientada pelos manuais. Antes de se levantar, repete solitária na cozinha:
    — É preciso respirar. É preciso saber respirar. É preciso não afogar agora.
 
    Quando o pai e a madrasta tocam a campainha do apartamento, agora iluminado, ela abre a porta de banho tomado, com os cabelos ainda úmidos e um sorriso, desencadeado pelo manual. Almoçam juntos, ela fala da expectativa para os próximos dias:
    — Agora é só esperar. Não tenho mais o que fazer, senão esperar.
    O pai ouve, sorri, um sorriso que não é de manual, e emenda um assunto sobre alguém por quem ela não se interessa, aliás, poucos interesses ela tem tido ultimamente. Quando alguém pergunta como ela está, quase sempre se lembra de uma irmã do avô, que morava no interior de Minas Gerais, que respondia lacônica à mesma questão:
    — Se véve.  
    Queria só dizer também: 
        — Se vive 
    Embora o pai prossiga com a conversa cotidiana, a madrasta entende a angústia da inevitável espera, se aproxima, segura as suas mãos e, assim como ela, ouve atenta, embora desinteressada, os assuntos do marido.
 
    O três se sentam na sala e para não continuarem o assunto ou ficarem em silêncio, a mulher liga a TV e zapeia os canais. Pula o programa sensacionalista, por causa da violência, que nesses tempos a sensibiliza mais profundamente; pula a novela reprisada, porque não aguenta mais constatar que o galã de outrora é um radical da direita que recentemente despejou uma série de agressões degradantes nas próprias mídias; evita os realities, porque sempre a incomodou a exploração das individualidades encenadas, até que chega a um documentário. Aparece o fundo do mar, a narração é francesa, ela coloca o áudio em português, porque o pai não trouxe os óculos e os três assistem a um modo de vida muito diverso e dificilmente encenado.
    Este é um programa inofensivo para esses dias, ela conclui. O mar azul, a vida misteriosa que habita o universo com o qual eles nunca tiveram alguma intimidade, informações relevantes de vidas que dificilmente encontrão no seu habitat.
 
    Relaxada, a mulher assiste ao documentário, com os pés na mesa de centro e as costas enterradas no macio do sofá. Pela primeira vez nessa semana, ela é capturada por uma narrativa que não é a própria, uma existência que não está à espera de uma nova.
    Na tela, os polvos são descritos como as criaturas mais "inteligentes, adaptáveis e engenhosas da Terra". A beleza das cores, dos oito tentáculos que capturam, ajudam na locomoção, na construção de abrigos, na manipulação de objetos e a escapar de predadores. 
    Uma mulher com o corpo entregue ao sofá de casa, se esquece das visitas, dos manuais, das proibições, da meta de absorção de ferro, de ter que respirar, de não poder se afogar, das teias de aranha sobre os armários, da louça que está sempre em atraso, do corredor escuro que atravessa agora e flutua como um polvo faz na televisão. Tudo é um balé marinho, a vida será para além do que "se véve", quando puder se levantar.
 
    Até que no filme ao qual assistiam, que parecia mais arte do que ciência, aborda a reprodução dos polvos. A fêmea é a única responsável por cuidar dos ovos. Depois de fecundada pelo macho, a fêmea deposita os ovos em um lugar seguro e se retira da sociedade, se afasta de todos os outros polvos para se dedicar às vidas encapsuladas. 
    A informação desinquieta a mulher, até agora tranquila, então ela ergue a coluna para acompanhar o desenvolvimento da narrativa inesperada de uma fêmea que cuida dos ovos e que aos poucos, deixa de se alimentar, de se locomover minimamente, para proteger seus descendentes. A polvo fêmea, que há minutos atrás, se deslocava como uma bailarina dos mares, com leveza, liberdade e coragem, sucumbe ao processo e morre, quando os ovos eclodem.
     O documentário dos polvos na TV, a mulher no sofá com dois ovos no ventre, pensa no próprio destino e começa a chorar. Os pés inchados, a pele do ventre fina e próxima de um limite que ela teme conhecer, as costelas enredadas por dois corpos formados, os pulmões que não alcançam o ar que ela precisa diariamente. Tem medo e preferia ser um cavalo marinho fêmea a ser esse polvo de oito tentáculos que não alcançam nada. O pai pergunta se ela se sente bem, a madrasta entende o medo. Ela limpa as lágrimas e responde um melancólico:
    — Se vive. Mas queria ser cavalo marinho.