domingo, 30 de março de 2025

Ele o guia, ela a única visão

    Estão ambos instalados em um mesmo tempo, mas diferente daquele de todos nós. Porque o que compartilham, atravessa os dias e os coloca em um universo paralelo, que frequenta este, mas não faz necessariamente parte dele. 
 
    São o mesmo homem e mulher que eu conheço há mais de uma década e, no entanto, são um homem e uma mulher que se fazem diferentes ao longo dos anos. Para mim, permaneço a mesma, possivelmente, para eles também sou outra, ao mesmo tempo que ambos sabem que não são o mesmo e a mesma, mas se revelam um para o outro a cada nascer do dia, e no final dele se conhecem profundamente, de novo.
 
    São duas mãos que não se desgrudam, desde o tempo em que os vi pela primeira vez até este estado de agora. Um homem e uma mulher que atravessam esta era juntos e solitários, ao mesmo tempo. Juntos porque têm um ao outro e solitários, porque só têm um ao outro. Sobem e descem as escadas dos ônibus, empurram carrinhos de supermercado, carregam sacolas de medicamentos e frutas da época. Tomam café na padaria em frente à praça, saem de cabelos molhados e bolsas de lona da academia de hidroginástica, compram carne moída e batata inglesa no mercadinho a duas esquinas da rua onde moram e cumprimentam seus vizinhos.
 
    Estão neste mundo comezinho de filés de frango, plantas, louças na pia e antibióticos, ao passo que também constroem um outro mundo específico, de idioma, culinária, práticas esportivas, culturais e de entretenimento muito específicos. Este segundo mundo é só deles, solo etéreo desconhecido para todos nós. Porque assim são as famílias, assim também são os relacionamentos, organismos independentes cuja homeostase é garantida por eles mesmos. 
    Mesmo que tenhamos proximidade, muitas ruas em comum e um mesmo ano, depois de cristo, complicado e cheio de instabilidades, não sei o que é viver no mundo do qual não faço parte. 

    A cada ano, as mãos parecem mais atadas, os ombros deles mais próximos e o espaço entre um corpo e outro já é mínimo, quase inexiste, dependendo da perspectiva. Imagino que entre as razões da proximidade está a dificuldade de locomoção da mulher e a limitação no processamento das ações dele. Ela parece mais vulnerável fisicamente e a fragilidade dele é cognitiva. Ele carrega as sacolas e ela faz as contas do troco das batatas. Ela aponta para o caminho que devem seguir e ele a ampara. 
    As duas cabeças de cabelos curtos, corte quase parecido, às vezes se tocam e amparam uma à outra quando a viagem de ônibus é um pouco mais longa. Nas fragilidades das estruturas de ambos é que se sustentam. E é bonito assistir a um outro mundo, que também desmorona às vezes, tentar se sustentar a todo custo.

    Com ele eu já troquei breves palavras, muito doce e educado, voz baixa e gestos contidos; e com ela eu conversei muitas vezes, sobre assuntos variados e sempre muito interessantes. Nas filas do supermercado, banco, farmácia, laboratório de análises clínicas, pontos de ônibus e manicure; em qualquer lugar ela encontra um interlocutor.  Ele é católico, usa um escapulário de São Francisco no pescoço e um outro de um santo que ainda não identifiquei, enrolado no braço; ela é Marxista e não usa nenhum símbolo que denote a sua ideologia.

    São duas pessoas interessantes que constroem um mundo singular a cada dia. Não parece finalizado, tampouco próximo de término, mas com carrinhos de saibro, cimento e britas ao redor de uma ilha que admiro sem conhecer. 
    Daqui não assisto as diversas interrupções, instabilidades de solo, mudanças de projeto, infiltrações ou pisos estufados, embora saiba que devam existir também. O que vejo frequentemente são duas forças que decaem na estrutura a cada subida e descida dos degraus dos ônibus do bairro e, junto à queda,  um florescer de companheirismo e fortaleza para suavizar a fragilidade do outro corpo. 
    Graças a essas construções, quando o mundo coletivo ameaça o perecimento, são esses outros mundos que me sustentam; os dos outros e o meu.



domingo, 23 de março de 2025

O que sentimos por último


    Uma mulher vestida com uma blusa vermelha de seda e uma saia bege plissada, em pé, enquanto assiste à performance de outros convidados na pista de dança. Parada, com os olhos brilhantes e um copo de refrigerante em uma das mãos, faz a confissão sobre um desejo que eu não ouvi e só soube depois. Eu saía da pista, procurava uma cadeira para aliviar a tensão dos músculos, exigidos demais pelo salto da sandália, mas a vi e a convidei para dançar.

    Nem os títulos, as traições, os inevitáveis adeuses, as descobertas, as falências múltiplas, tampouco as perdas dilacerantes ou os muitos moinhos contra os quais investiu sua luta. Nem os filhos gestados e paridos, as roupas abandonadas porque a cintura engrossou, as lições de casa no caderno sem pautas e mais tarde, com as linhas, os colares de macarrão e a fruteira de palito de picolés, em cima da mesa de centro, de gosto questionável pelos outros.   

        Nem os abraços, os costumes, a cama, ainda quente, com o cheiro da criança amada que cresce e vai à escola. Nem os beijos doces de suas crias bonitas, as receitas de família ou de um site qualquer nem as muitas idas ao supermercado, os doentes a quem assistiu, os banhos em idosos ou bebês recém-nascidos nem as duas adolescências desafiadoras, os vestidos brilhantes nas formaturas nem a lágrima na borda da sepultura do filho.   

    Nem o uniforme de enfermeira da Santa Casa de Misericórdia, a grinalda e o véu longuíssimo do casamento na Igreja Metodista nem o nome bíblico da filha primogênita. 
    Nem as injeções em doentes, os almoços do pai e as três refeições diárias dos filhos, os colares de pérola, os brincos dourados, a tinta loira no cabelo curto, tampouco os preenchimentos nos lábios dos últimos anos. Nem a própria infância árida de afetos e miserável de consolos, o casamento feliz e um companheiro apaixonado de quem a vida foi menos longa do que a dela. 
    Nem o pó de arroz cuja marca já não existe mais, o blush, o luto que não acaba, as noites de choro e a ginástica da manhã. Nem as netas de cabelos cacheados e o milagre de um céu rosado no fim de tarde de setembro. 

    Nem os porta-retratos e a juventude eterna do filho que preferia grisalho agora, nem as matinês de cinema no namoro, o primeiro emprego e a casa a qual desejou não retornar e que desbotou sem ela nem as hortênsias que só regou depois de adulta. Nenhuma certidão, registro, documento em mais de uma via, cartórios, advogados, contadores ou uma pasta de arquivos no computador da filha. Nem o cachorro que ela permite que suba no sofá.
  Nem na ponta da agulha com a qual ela prega o botão na camisa do genro, na escova que ela usa para pentear o cabelo, no café que toma às quatro da tarde. Nem no xampu preferido, nas gotas do perfume que usa há vinte anos, nas viagens com a família, nas igrejas que frequenta.

      Nem a mãe de gênio difícil, o pai amoroso, mas omisso, os irmãos muito diferentes dela, a primeira relação familiar conflituosa e a que conseguiu construir. Em nenhuma desistência que a fragilizou ou em cada obstinação que ela capitaneou solitária. 
    Com uma blusa vermelha cintilante e saia plissada, com um copo de refrigerante na mão, eu quis parar e ela queria dançar. Em trinta segundos, os olhos brilhantes dela cruzaram com os meus e o convite. Nenhum histórico que nos abonasse ou condenasse, nada antes e  nenhuma expectativa de amanhã; só a música que atravessava os nossos corpos e nos conduzia ao desejo novo dela e uma satisfação remota minha.

        Semanas depois, eu recebo o recado e um vídeo dela com saia vermelha e coreografia cigana:
    —Me matriculei na aula de dança.
        Nada do eu que conheci dela até agora é mais revelador e próximo do que nós duas em uma pista, com luzes e música. Minha tia sexagenária agora dança. O que sentimos por último é mais de nós do que tudo o que fizemos até chegar aqui.




domingo, 16 de março de 2025

Nem trovões ou cataclismos, mas carnaval

  Nem falésias nem planaltos,  nem cumes ou sopés; só um buraco invisível na geografia do mundo. Nenhum sinalizador, nenhuma referência cartográfica, só o minuto seguinte à dissolução, e não passa. A tristeza é a última a descer do comboio e embora seja a menos estrondosa, é a que detém atenção. A raiva é a única a se manifestar no guichê da companhia, embora rechaçada, é essencial para a viagem de volta.
  Ninguém sabe ao certo, mas também não ignoram completamente o acidente geológico. 
 
  E lá fora, a música, os sambas de uma festa e as vozes leais de quem faz vigília às margens do buraco,  porque não querem deixá-la só com o silêncio. 
   Uma fenda sem medidas, sem localização, nenhum histórico de formação; só um buraco invisível no mundo.      
   Nenhum desmoronamento aparente, nem de construções ou crenças, só um buraco irrelevante na costura do mundo.  Nem parques ou bosques, nem arranha-céus ou chalés, nenhuma arquitetura que assimile a grotesca fenda. 

  Nem vulcões ou tornados, só a neblina de uma manhã de ausências na soleira. Todas chegam agora. Crescer é perder. No dia da sentida partida, enfileiram-se todas as ausências anteriores e continuam a doer. O tempo não supera o buraco, o tempo diminui a espessura da abertura.  
  Nem eclipses nem lua vermelha; só um céu de verão igual ao de ontem. Nada que justifique deitar com a cortina aberta e olhar o céu até dormir. Do buraco, o mesmo céu. 
  
  Nenhuma manada de mamutes ou rinocerontes; só um gato amarelo ao pé da cama com uma oferta de amor da qual entendo quase nada. Por que assim tão distante noutros dias e agora tão disponível, quando não sei corresponder? Um gato é o único mistério que não dói. 
  Nem safari nem visita ao zoológico, mas uma lança atravessada em algum órgão vital; uma ferida transparente no organismo do mundo. Sem prescrições químicas ou terapêuticas que curem. Um buraco no peito e nenhum concreto que cubra.
 
  Nem Odisseia nem Lusíadas, só um capítulo inicial de Grande sertão Veredas, quando Riobaldo ainda não amava Diadorim. Amar o desconhecido, o para sempre outro. Diadorim uma neblina. 
  Nem missivas estrangeiras ou telegramas oficiais, só uma nota no celular. Da despedida, o escrito não é o mais importante, mas o falado, aos poucos, é perdido. No fim, duas grandes históricas inventadas. Capítulos silenciados, frases subvertidas, diálogos que nunca existiram. Um buraco também é uma escrita.
 
  Nem mar profundo ou cabeceiras de água; só uma goteira, ritmando a solidão instalada no quintal. Nas roupas estendidas no varal, na pintura descascada misturada com os musgos que se alastram pelo muro, nas sementes que ainda não foram plantadas, nas germinadas e nas que não vingaram. 
 Nem recomeço ou outra estrada, só a rotina de sobreviver ao infinito destroçar de sonhos. Um buraco não é uma curva, uma partida ou uma chegada, só um acidente microscópico inconsolável e duradouro. Infinita passagem e inevitável visita. Sentada com o gato, a tristeza e a raiva, esperando pela quarta-feira de cinzas e, antes, um samba-enredo que traduza a nossa dor.    
 
  Nem certezas nem evidências, só a suspeita de mais um declive incontornável. Nem trovões ou cataclismos, mas carnaval.
 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Ninguém lá fora que saiba mesmo de nós

  É uma mulher com uma vassoura. Mas não só ou sempre, embora todos os dias aquela mulher e aquela vassoura. É uma mulher em um jardim, protegido por grades. Mas não só, embora todos os dias seu rosto esteja listrado pelas hastes que protegem seu universo particular.
  É uma mulher de cabelos tingidos de preto, sem cães, filhos, gatos ou cacatuas. É uma mulher com um jardim, uma casa entre dois prédios, chapéu e óculos de sol no verão. 
 
  É uma mulher que teve a solidão acompanhada interrompida pela despedida da outra. Foram duas por muitas décadas, até acordar sozinha numa manhã de angustia. 
  Uma mulher com os traços semelhantes aos da outra, que dividiam o mesmo tubo de tinta, um sobrinho e o jardim da casa, com uma porta de vidro jateado na entrada. Uma mulher de sombras e silhuetas por causa da porta da sala.
  Uma mulher na qual ainda vejo duas. Mas não só e sempre, embora todos os dias aquela mulher e a sua outra. 
 
  Uma mulher septuagenária continua com as mãos sujas de terra ao final da tarde, com cheiro de amaciante de roupas pela manhã e de alho ao meio-dia. Uma mulher que, agora, faz as suas compras pelo telefone e que não vai mais à feira, puxando um carrinho de alumínio de duas rodas. Uma mulher que combina o valor da limpeza do seu quintal com o prestador de serviços que recomendaram, que pede ao vizinho que troque o seu botijão de gás, porque acha que a peça entrou mal ajambrada e que por isso não consegue apertar ou afrouxar e cujos os dias precisaram ser reinventados depois de mais uma partida. 

  Uma mulher septuagenária mantém a sua ilha, sem negociações, sem sucumbir à especulação imobiliária, à hérnia de disco e aos vazios que os dias também trazem; não só ou sempre. Mas a qualquer tempo.
 Enquanto ela explica ao vizinho sobre o botijão que não concluiu a troca, eu me lembro da escritora, que ao ser perguntada sobre quando voltaria a publicar, respondeu: 
  — Não se perde uma irmã e continua-se a escrever. 
   Então perde-se uma irmã e continua o quê? Além de continuar a equilibrar a ilha. O que ela nunca mais fez, depois da partida e que não sabemos? O que eram as duas antes do rompimento do fio da vida? Essa vida é a que me interessa. Uma vida que não precisa ser narrada. 

  Uma mulher, depois do luto, e uma mangueira verde de borracha, nas suas mãos, para aguar o jardim. Não só ou sempre, embora todos os dias a mulher e a água salpicada nas folhas e entranhada nas raízes. Uma mulher que se escrevesse não o faria mais, ao menos nos dias seguintes ao apagamento da outra zeladora da ilha. 
  Uma mulher septuagenária que não contratou ninguém para escrever a sua história, que não pinta, que não desenha e que talvez não queira escrever. Uma mulher cuja vida é só sua. Embora não somente ou sempre, mas todos os dias uma mulher e a sua história.
 
  Uma mulher sem um testamento, mas com um botijão de gás, ervas daninhas e questões ínfimas, mas completamente essenciais à sobrevivência da sua casa, corpo e existência. Uma mulher e os seus senões secretos, uma mulher sem seus ódios conhecidos e as suas fúrias, afofadas na terra do jardim em frente à casa. Uma mulher e os desejos impublicáveis de uma mulher; só porque não escreve. 
  Uma septuagenária na adolescência de uma vida que requisita mãos solidárias e conselhos para dispensar na lata de lixo, depois do chá. 
  Uma mulher e o quilo de feijão escolhido. Não só ou sempre, mas todos os dias arroz com feijão no seu prato, com uma orquídea pintada nas bordas.

  Uma mulher com uma vida misteriosa e somente dela. Mas não só ou sempre, embora todos os dias aquela mulher e aquela vida.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Um copo de Flaubert para mim, meio de Aquaflorin para ela

  Meio copo de água para mim, meio para essa espécie que eu trouxe do supermercado pela manhã. Compartilho com ela meu calor, minha sede e hidratação prescrita. Queria compartilhar histórias, mas ela acaba de se instalar nesse mundo e talvez a intimidade ainda não se justifique. 
  Meia jarra de água gelada para mim, meio copo para ela, que parecia muito mais sacrificada há duas horas quando a trouxe para casa. Permanecemos no silêncio seco do domingo, sem histórias, confissões, memórias partilhadas; só dividimos a sede e a água, por ora. E se a sede dela for menor que a minha? E se eu não souber calcular quanta água cabe na sua necessidade? Já afoguei quem eu quis tanto; já encharquei as raízes de uma espécie, que não suportaram.   

  Digito o  seu nome, que veio na etiqueta, quando a resgatei do sufocante mostruário e pergunto ao oráculo quanta água é suficiente, para ela, em dias de muito calor. 
  Depois da primeira pergunta, entro em um labirinto de indicações de suplementos, vitaminas e adubos; um arsenal de informações sobre reprodução, podas e origem. 
  Agora, sei muito mais sobre ela do que sobre mim: espécie originária da Pérsia, que se adapta bem ao calor, desde que com umidade frequente e vento. 
    Mais um copo de água para mim e meio para ela. Acho que não me adapto bem ao calor, tampouco venho de tão longe.
 
     Uma xícara de literatura para mim, uma para ela. Coloco tocar o álbum pelo qual estou obcecada nos últimos dias, abro mais as janelas para entrar o vento, busco o livro na cabeceira da cama e vou ser sua companhia durante o máximo de horas que eu puder, hoje. Leio um trecho do Romance para a recém-chegada e deposito mais água nas suas folhas, porque as raízes já parecem suficientemente molhadas. "Confundia, no desejo, a sensualidade do luxo com as alegrias do coração, a elegância dos hábitos com a delicadeza dos sentimentos. Acaso não necessita o amor, como certas plantas, terreno preparado, temperatura especial?" Uma página de Flaubert para mim, um parágrafo que fala para ela. 
  Será esse o nosso terreno ideal? Como não matar a planta? Como não afogá-la ou matá-la de sede? Ainda não tenho respostas.
 
  Um copo de coragem para mim, outro para ela. Quando a amparei  no supermercado, eu não me sentia preparada ou disposta a isto. Bastou vê-la, da fila, tão debilitada, mas ainda presa à vida, com um botão de flor, sinalizando o futuro, que eu quis regar sua resistência. Agora somos duas, além das outras espécies que eu tenho conseguido manter. Não vou ainda confessar a ela os meus fracassos, porque a quero segura e relaxada, não contarei sobre os vasos dos quais precisei desfazer, das raízes podres por excesso de umidade ou das que foram tingidas pelo amarelão nas folhas e logo se despediram da vida.
  Um copo de coragem para mim, que ainda continuo insistindo em me lançar nessa adoção arriscada e um para ela, que se equilibra na minha estante de livros, com vento, sol e nenhuma gota de chuva. 

  Durmo com Flaubert, quando descreve Carlos, meu tédio é quase o mesmo de Emma. Um sonho de domingo para mim, outro para ela. Sonho com uma casa de muitos cômodos e em todos, eu procurava a janela. Não sou uma espécie de longe, mas também preciso de vento. Emma também precisava respirar.   
  Um copo de incerteza para mim, outro para ela. A segurança no tédio ou a hesitação no acontecimento? Não me esqueço do corte anatômico que eu vi há pouco, da espécie que comigo agora mora, são raízes pequenas para folhas que parecem gigantescas, quando se desenvolvem. Terei que aprender algum método para que ela não se desvencilhe do que a nutre ou a própria natureza garante essa aderência?

  Uma esperança verde-lispector para mim, outra para ela. Vou testar os lugares da sala e se não forem bons, tentarei a cozinha, se fracassar,  temos mais dois quartos, um corredor, uma sacada e a lavanderia. Se o apartamento sufocar, ela tem o mundo. Aquele que Emma não conheceu. Tentarei pequenas porções de água ao longo do dia ou gelo depositado na terra que a cerca, mas se ela não se adaptar mudo as proporções e invisto em outra estratégia. 
  Só não quero que ela seja mais a espécie que sucumbia entre as gôndolas de limpeza doméstica e produtos para automóveis. Há de brotar uma novíssima folha até o carnaval.

  Um oceano de saudade para mim, um regato para ela. Das distâncias com as quais eu me acostumo, só uma ainda me afeta, aquela onde o meu silêncio mora. 
  Será que a família persa é tão longínqua a ponto dela não ser capaz de se lembrar, como eu que ignoro antepassados de duas gerações? Será que ela sentirá saudades do supermercado, de qualquer experiência ou rotina que a fizesse se sentir em casa ou de alguém ou algum lugar pelo qual ela passou antes dele? E se assim for, ela poderá me perdoar pelo afastamento? Devo me culpar pelas saudades dela ou absolver todas as saudades que ocupam esse apartamento? Se eu abrir mais as janelas, além da espécie que chegou hoje pela manhã, poderei também me sentir mais solta e com menos saudade? Um copo e meio de compaixão para quem nunca viveu sem saudade. 
  Um copo de água com Flaubert para mim, meio de Aquaflorin para ela, para nos salvarmos da sede, da desnutrição, do tédio de Carlos e do domingo incendiário de fevereiro.