Estão ambos instalados em um mesmo tempo, mas diferente daquele de todos nós. Porque o que compartilham, atravessa os dias e os coloca em um universo paralelo, que frequenta este, mas não faz necessariamente parte dele.
São o mesmo homem e mulher que eu conheço há mais de uma década e, no entanto, são um homem e uma mulher que se fazem diferentes ao longo dos anos. Para mim, permaneço a mesma, possivelmente, para eles também sou outra, ao mesmo tempo que ambos sabem que não são o mesmo e a mesma, mas se revelam um para o outro a cada nascer do dia, e no final dele se conhecem profundamente, de novo.
São duas mãos que não se desgrudam, desde o tempo em que os vi pela primeira vez até este estado de agora. Um homem e uma mulher que atravessam esta era juntos e solitários, ao mesmo tempo. Juntos porque têm um ao outro e solitários, porque só têm um ao outro. Sobem e descem as escadas dos ônibus, empurram carrinhos de supermercado, carregam sacolas de medicamentos e frutas da época. Tomam café na padaria em frente à praça, saem de cabelos molhados e bolsas de lona da academia de hidroginástica, compram carne moída e batata inglesa no mercadinho a duas esquinas da rua onde moram e cumprimentam seus vizinhos.
Estão neste mundo comezinho de filés de frango, plantas, louças na pia e antibióticos, ao passo que também constroem um outro mundo específico, de idioma, culinária, práticas esportivas, culturais e de entretenimento muito específicos. Este segundo mundo é só deles, solo etéreo desconhecido para todos nós. Porque assim são as famílias, assim também são os relacionamentos, organismos independentes cuja homeostase é garantida por eles mesmos.
Mesmo que tenhamos proximidade, muitas ruas em comum e um mesmo ano, depois de cristo, complicado e cheio de instabilidades, não sei o que é viver no mundo do qual não faço parte.
A cada ano, as mãos parecem mais atadas, os ombros deles mais próximos e o espaço entre um corpo e outro já é mínimo, quase inexiste, dependendo da perspectiva. Imagino que entre as razões da proximidade está a dificuldade de locomoção da mulher e a limitação no processamento das ações dele. Ela parece mais vulnerável fisicamente e a fragilidade dele é cognitiva. Ele carrega as sacolas e ela faz as contas do troco das batatas. Ela aponta para o caminho que devem seguir e ele a ampara.
As duas cabeças de cabelos curtos, corte quase parecido, às vezes se tocam e amparam uma à outra quando a viagem de ônibus é um pouco mais longa. Nas fragilidades das estruturas de ambos é que se sustentam. E é bonito assistir a um outro mundo, que também desmorona às vezes, tentar se sustentar a todo custo.
Com ele eu já troquei breves palavras, muito doce e educado, voz baixa e gestos contidos; e com ela eu conversei muitas vezes, sobre assuntos variados e sempre muito interessantes. Nas filas do supermercado, banco, farmácia, laboratório de análises clínicas, pontos de ônibus e manicure; em qualquer lugar ela encontra um interlocutor. Ele é católico, usa um escapulário de São Francisco no pescoço e um outro de um santo que ainda não identifiquei, enrolado no braço; ela é Marxista e não usa nenhum símbolo que denote a sua ideologia.
São duas pessoas interessantes que constroem um mundo singular a cada dia. Não parece finalizado, tampouco próximo de término, mas com carrinhos de saibro, cimento e britas ao redor de uma ilha que admiro sem conhecer.
Daqui não assisto as diversas interrupções, instabilidades de solo, mudanças de projeto, infiltrações ou pisos estufados, embora saiba que devam existir também. O que vejo frequentemente são duas forças que decaem na estrutura a cada subida e descida dos degraus dos ônibus do bairro e, junto à queda, um florescer de companheirismo e fortaleza para suavizar a fragilidade do outro corpo.
Graças a essas construções, quando o mundo coletivo ameaça o perecimento, são esses outros mundos que me sustentam; os dos outros e o meu.