Pareço louca
domingo, 17 de novembro de 2024
Aos que têm razão, o gosto da dúvida
domingo, 10 de novembro de 2024
Nunca mais a segurança das horas
domingo, 3 de novembro de 2024
Deve existir uma fresta onde a luz brilha permanentemente e a escuridão não alcança
segunda-feira, 28 de outubro de 2024
Que sempre há um pé no ar enquanto o outro está no solo
Do terceiro andar eu a vejo lavar a calçada, mais uma vez. Todo sábado, há uma década, ela joga um pouco de sabão em pó na calçada molhada e esfrega obstinada; com potência, mas sem pressa. O chão que ela lava tem duas camadas de cores diferentes, que agora descascadas, se misturam. O verde é mais antigo, a camada mais embaixo, herança do tempo em que na sala comercial do primeiro andar do prédio, em que ela trabalha, funcionava uma imobiliária cujo logotipo era uma trevo de quatro folhas. Até se instalar na loja alugada uma empresa de produtos para piscina e pintarem de azul a calçada que era verde. As duas lojas fecharam há anos, mas as outras que se instalaram lá não se arriscaram a uma nova camada de cor.
Todo sábado ela joga água e empenha esforço em manter muito limpas as camadas que desbotam com o passar dos dias. A mistura da espuma de sabão com as duas cores aparentes da calçada, fazem lembrar o mar. São dez minutos de trabalho e, se estou em casa, acompanho cada minuto. Extasiada com a beleza de uma calçada descascada.
Esse sábado eu não acompanhava o movimento pela janela. Já passava das oito e eu não tinha vontade de me levantar ainda. Acordei sem camada alguma de cor. Era calçada de concreto, cinza e aspereza. Há dias em que o cuco atrasa, minha avó dizia, quando estávamos mal humoradas. Nem tínhamos um relógio desses em casa, mas sabíamos exatamente ao que ela se referia. Ela ainda completava: o cuco atrasa, mas aparece. Era a injeção de ânimo que ela se prontificava a aplicar. Não condenava nossa tristeza, não exigia sorrisos pontuais, só sugeria esperar pela volta da alegria. E só de me lembrar dela e do seu conselho amoroso, senti que estava pronta para uma camada de cor. E o cuco abriu a casinha.
E que há crianças ouvindo histórias, contando histórias e sonhando histórias. Que às duas da manhã também poderá se lembrar do amor antigo, do velho amigo, da tia que dava dinheiro de aniversário. Que imobiliárias ou trevo de quatro folhas só dão sorte se pintarem a calçada de verde e que o azul na frente da loja de produtos para piscina é a estratégia mais antiga do marketing e que devia retornar. Disse também que eu agradecesse a quem me vê todo sábado e quando eu atraso sente a minha ausência. Minha avó tão silenciosa sempre, quando falava do pássaro do relógio, falava também que sempre há um pé no ar, enquanto o outro está no solo. O sonho e os dias de calçada cinza. O azul e verde das ondas e também a calçada de concreto.
De longe, vejo a mulher que lava a calçada todos os sábados, andar até o ponto de ônibus e, mais uma vez, ela abana a mão para mim. Um pé no ar e o outro no solo, sem desequilibrar ela entra no ônibus e só nos veremos, de novo, no próximo sábado. É o que eu espero.
domingo, 20 de outubro de 2024
Penelope obscura
A cama não é mais fria, o almoço não parece mais insípido, nem o corredor mais longo ou a porta mais pesada. Os latidos dos cães ainda aparecem ao fundo dos áudios, chamadas de vídeo ou reuniões online, que eu faço de casa, os varais estão sempre com roupas penduradas, os vizinhos são os mesmos desconhecidos que, se variam, eu nem noto.
Aquela árvore em frente ao prédio é a mesma; de raízes e troncos familiares, mas folhas que caem e crescem todos os anos. O porteiro ainda guarda as cartas que chegam para você, o zelador ainda me chama por outro nome e o nome do prédio, da rua, do bairro ainda impregnam a minha identidade — algum dia falamos sobre isso e lembramos de cada um dos nomes de todas as ruas em que moramos — Isso também é a nossa história, você disse.