domingo, 17 de novembro de 2024

Aos que têm razão, o gosto da dúvida

    Aos que têm dentes, que nunca falta a fome, a mesa e o instante do desejo à boca. Que não falte ao prato a versão apetitosa da sua escolha em animal ou planta. Que os lábios reconheçam a presença ou a lembrança do afeto e, como um cão cujo entusiasmo reflete na cauda, deixem que eles se apresentem escancarados.
    Aos que têm dentes, que não falte o controle do limite de abocanhar um inimigo na luta. Que a pressão dos dias não enrijeça o maxilar, não torne o dormir um tormento e o ranger dos dentes uma canção noturna.

    Aos que têm ouvidos, que compreendam as vozes familiares e tenham a sua, por eles também, compreendida. Aos que têm ouvidos, que não permitam os silêncios seculares, que não ignorem os que também têm o que dizer.
    Aos que têm ouvidos, que não sangrem quando as palavras-bomba riscarem os seus céus. Que possam ignorar os julgamentos dos que não têm coragem e inflamam a covardia.

    Aos que têm olhos, que permitam que as belezas cotidianas sejam diariamente redescobertas e não deixem que os padrões alheios direcionem os seus deslumbramentos. Aos que têm olhos, que não se cansem, não se acostumem, não sejam ordinários com o privilégio da contemplação. 
    Aos que têm olhos, que não virem o rosto para o que não é bonito, não é desejável, não é higienizado e que também só existe por culpa nossa, por omissão ou usufruto. Que não neguem aos olhos que têm, a verdade e a denúncia e que os olhos também sejam testemunhas.

    Aos que têm pés, que não se recusem a caminhada, que no cansaço encontrem a linha da esperança e sejam por ela guiados. Aos que têm pés que se afastem dos que os querem inertes em uma varanda de mármore; que saibam correr de algo ou para algo, que não se envergonhem de dançar e errem muitas vezes todas as coreografias e que nem mesmo por isso se censure de ir para o meio do salão. Aos que têm pés, que saibam a distância de um chute no campo de várzea ou nas relações sem afeto. 
    Aos que têm pés, não negociem sua liberdade, seus espaços, suas autorias infinitas porque nem sempre há um chamado. Aos que têm pés, simplesmente vão.
 
    Aos que têm sonhos, não os coloque no colo de alguém, mesmo que sejam muito queridos e confiáveis. Compartilhem, ofertem uma alça da bolsa, mas não toda ela. Aos que têm sonhos, sejam responsáveis por eles, mesmo em dias muito difíceis, porque são eles que ajudarão atravessar o breu. 
    Aos que têm sonhos, use-os como almofada de descanso, cantil para carregar a água e matar a sede, galochas para proteger os pés quando precisarem atravessar um lamaçal, escapulário santificado para quando nada mais parecer possível, guarda-chuva ou guarda-sol para salvaguardar dos pingos, raios e vaias.

    Aos que têm razão, que a gota da hesitação caia na xícara de café e que, então, relativizem, suavizem e não condenem sem ouvir a defesa. Aos que têm razão, o gosto da dúvida, da incerteza, da possibilidade de não estar certo sempre. 
    Aos que têm razão, complacência com os que não têm, os que se relacionam com o mundo com lágrimas nos olhos, suor nas mãos e taquicardia. 
    Aos que têm razão, que a desconfiança na calibragem da balança os ajude a um juízo menos definitivo. Aos que têm razão, que as outras vozes também o alcancem no alto da torre. 
 
    Aos que têm coração, que tenham a sorte de quebrá-lo muitas vezes e ainda assim não torná-lo intransponível para a flecha que não mata. Aos que têm coração, que sejam vulneráveis sem temer e fortes sem ameaçar. Que reguem a planta sem afogá-la e que saibam que ao alimentar os peixes, o mínimo é o bastante.
    Aos que têm coração, que não o traiam, não o calem ou invisibilize as suas escolhas. Aos que têm coração que encontrem nesse mundo, ainda, outros que também o têm.




domingo, 10 de novembro de 2024

Nunca mais a segurança das horas

    Todas as vezes em que nos vimos ele perguntou o horário; em todas as vezes que ele perguntou o horário, eu tirei o celular da bolsa e informei a hora cravada. Mais de uma década de encontros e nunca nos permitimos mudar os rituais.  Há mais de dez anos eu me lembro que não uso mais relógio e ele não se importa que eu tenha que parar, procurar o celular e, logo depois, guardá-lo novamente. Nunca achou que era um incômodo e eu também não quis que ele pensasse que poderia ser.
    Sempre atribuí uma sintonia nesse movimento: ele se aproxima, pergunta as horas, eu paro, abro a bolsa, busco o celular, seguro o aparelho com as duas mãos, modulo a minha própria voz e respondo à pergunta.

    Foi assim que o conheci, foi assim que ele permaneceu na minha vida. Figura de uma só frase e eu, pessoa com uma das poucas respostas que podia oferecer sem dúvidas. Foram anos desse contato de superfície, anos de uma certeza que eu me permitia. Quatro e quinze, vinte para as duas, seis e meia, uma e treze, meio-dia e cinco. 
    Nos primeiros anos, esperava que se não avançasse o diálogo, ao menos variasse um pouco a temática. Nunca mudou e com o tempo deixei de esperar. 
 
    Aprendi a me reconhecer ali, na certeza, na comodidade e no bem-estar que é se instalar no conhecido. Ele nunca me disse o seu nome, tampouco perguntou o meu. Seguimos assim, dois desconhecidos que sabem um do outro, mais do que por um cumprimento ou alguma gentileza intermitente, mas um compromisso, ele com a pergunta e eu com a certeza. 
    Para ele, as horas, para mim, a interrupção do caminho. Sua figura um pouco torta, um pouco manca, um pouco frágil, um pouco rouca pelo cigarro que nunca o abandona está há tanto tempo por aqui, que eu já nem lembro, se um dia não tive que abrir a bolsa e procurar o celular para alguém além de mim.

    Não conheço sua família, seu passado, o que faz com as horas que eu cravo, mas se fico mais de dois dias sem o ver, eu sinto a ausência da sua súbita aparição. Quando ele falta, ando pela rua mais devagar, mais atenta, procurando pela sua saltitante abordagem. Nem todos os dias ele vem. Já faltou por semanas seguidas, enquanto eu me perguntava se nunca mais ele me perguntaria.
  Por uma centena de vezes, pensei em comprar um relógio de pulso, que ficaria preso ao meu, mas disponível a ele. Outras vezes, também pensei em, enquanto abria a bolsa, fazer uma questão a ele, mas não avancei em nenhum dos dois projetos.
 
    Cinco e um, doze para as quatro, oito e vinte e três, meio-dia e trinta e sete. Nada além do que sempre tivemos. Já ensaiei andar com o celular mais acessível, talvez no bolso, nas mãos, só enquanto eu descesse a rua, porque nosso encontro tem uma geografia bastante limitada e, então, nossa interação seria ainda mais eficiente, não teríamos o silêncio da espera, da procura, do zíper da bolsa que agarra, do guarda-chuva que obstrui o caminho entre a minha mão e o aparelho celular. Mas, então, o que seríamos? Ainda menos? Ainda mais abreviados? Mantive o zíper fechado, o guarda-chuva dentro da bolsa, o silêncio entre a pergunta e a resposta, o tempo para o trago, o nosso ritual de segundos contados.
 
    Mas sábado pela manhã, uma novidade invadiu a nossa constância; uma surpresa me despiu a certeza e a nossa superfície ganhou uma pequena rachadura. Na manhã nublada, enquanto eu voltava com dois pães franceses para o café e um quindim para a sobremesa, ele apareceu e quando eu já abria a bolsa para buscar a sua reposta, ele mudou o tema. Eu me preparava para os números no visor, para a composição dos números em horas e minutos e ele lançou a mais difícil das questões:
    — Quem é você?
 
    Nunca mais a segurança das horas. Nunca mais vinte para quatro, uma e vinte e cinco, três e quarenta e três. Vou ter que me acostumar a essa nova pessoa, cujas perguntas talvez me desestabilizem. Vou ter que me acostumar novamente às dúvidas. Talvez inventemos outros rituais; talvez a próxima questão seja menos impossível.
 


domingo, 3 de novembro de 2024

Deve existir uma fresta onde a luz brilha permanentemente e a escuridão não alcança

    Deve haver um lugar onde os cães que nos acompanharam na infância, onde as bolas de futebol perdidas, os sábados inteiros na piscina e os vagões do trem, no qual fomos à escola por cinco anos e que nunca mais entramos, permanecem. Deve existir um lugar em que guarda as esperanças desfeitas, os sonhos roubados, os planos infinitamente adiados e as amizades interrompidas.
    Deve haver um território em que os pares de sandálias de borracha, de brincos e tarraxas, os guarda-chuvas esquecidos, os livros de biblioteca nunca devolvidos, os protocolos perdidos se encontram e permanecem protegidos.

    Deve haver uma fenda muito sutil onde os amores que a gente acredita, mas acabam, vivem para sempre. Um lugar quente, fraterno e generoso onde se escondem o tempo perdido, a palavra silenciada, o sentimento contido. Deve existir um lugar onde todas as bonecas preferidas das meninas que cresceram moram, onde soldadinhos, dinossauros, jogos de botão se confraternizam.

    Deve existir uma fresta onde a luz brilha permanentemente e a escuridão não alcança. Onde os desejos esquecidos resistem íntegros, esperando que os seus donos venham buscá-los; um Achados e Perdidos de todos os humanos.
    Deve haver um canto, um lugar esquecido em que as promessas não se dissipem, que as declarações de amor não se esvaziem nem os beijos se tornem frios. 
    Um lugar em que os navios naufragados sejam resgatados, em que as memórias não sejam apagadas por nenhum transtorno, em que as velhas ainda se lembrem da receita de doce de abóbora, das datas de nascimento de cada filho e do próprio nome para sempre.

    Deve existir, para além da dor, um lugar onde o luto não seja só lamento, que guarde os bons momentos e seja o sítio do reconhecimento pela oportunidade do encontro. 
    Deve haver um lugar onde os constrangimentos aos quais uma mulher adulta é submetida por desconhecidos na fila de espera de qualquer repartição pública — se não se casou, por que é que nunca se casou, se não quer se casar e ser mãe e esconder os fios grisalhos — é soterrado sutilmente. Onde todas as violências às quais uma criança é subjugada diariamente — incerteza do amor, medo do abandono, inseguranças em diversas dimensões — são dilaceradas.
     Deve haver uma paragem, onde os meninos da Candelária, os índios que dormiam no ponto de ônibus e as iranianas que mostraram os cabelos estejam seguros e conheçam a justiça.

    Deve existir uma greta em que os brincos de ouro, os batons preferidos, o pé de meia perdido, os lenços vermelhos, os lençóis de visita, as toalhas de banho de viagem se abriguem, até alguma mão vir retirá-las. Uma fissura onde as fotos 3X4, as chaves de alguma gaveta, os cartões de vista com as marcações do dentista e uma carta de amor nunca ridícula estejam seguras. Um lugar em que uma lembrança diária, um nome nunca mais pronunciado, mas jamais esquecido, uma folha com um desenho de uma criança, um pano de prato, bordado pela mãe e uma lamparina roubada da casa do avô se abriguem para sempre.
 
    Deve haver esse reservatório em que as inutilidades que nos fazem falta para o resto da vida estejam em harmonia e ainda saibam de nós. Um lugar em que o medo, a escuridão, o bom senso, o tempo, as divindades e a ciência nunca o encontrem. 
    Deve existir esse buraco negro em que os buracos no meu peito e no seu se reconfortam; que os casais, os amigos, os pais e filhos que se dilaceraram estejam restaurados. Em que as mudas de plantas roubadas, os cães abandonados e os gatos sem dono crescem e ocupam todos os vazios.
 
    Deve existir um canto do mundo em que as canções, os poemas, os retratos pintados, as peças de teatro, as fotografias e os filmes desconhecidos circulem plenamente. Em que as estrelas e anjos caídos descansem até ascenderem novamente. 
    Deve haver uma nesga no planeta em que as carteiras, celulares, ingressos de um festival, noites em claro, dias especiais, o primeiro amor, a mais recente paixão, a canção dedicada, o último romântico e a primeira professora estejam preservados. Deve existir um lugar onde o tempo não desfaz coisa alguma e que as distâncias só alcançam alguns centímetros. Deve existir um lugar.



segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Que sempre há um pé no ar enquanto o outro está no solo

    Do terceiro andar eu a vejo lavar a calçada, mais uma vez. Todo sábado, há uma década, ela joga um pouco de sabão em pó na calçada molhada e esfrega obstinada; com potência, mas sem pressa. O chão que ela lava tem duas camadas de cores diferentes, que agora descascadas, se misturam. O verde é mais antigo, a camada mais embaixo, herança do tempo em que na sala comercial do primeiro andar do prédio, em que ela trabalha, funcionava uma imobiliária cujo logotipo era uma trevo de quatro folhas. Até se instalar na loja alugada uma empresa de produtos para piscina e pintarem de azul a calçada que era verde. As duas lojas fecharam há anos, mas as outras que se instalaram lá não se arriscaram a uma nova camada de cor.

    Todo sábado ela joga água e empenha esforço em manter muito limpas as camadas que desbotam com o passar dos dias. A mistura da espuma de sabão com as duas cores aparentes da calçada, fazem lembrar o mar. São dez minutos de trabalho e, se estou em casa, acompanho cada minuto. Extasiada com a beleza de uma calçada descascada.

    Esse sábado eu não acompanhava o movimento pela janela. Já passava das oito e eu não tinha vontade de me levantar ainda. Acordei sem camada alguma de cor. Era calçada de concreto, cinza e aspereza. Há dias em que o cuco atrasa, minha avó dizia, quando estávamos mal humoradas. Nem tínhamos um relógio desses em casa, mas sabíamos exatamente ao que ela se referia. Ela ainda completava: o cuco atrasa, mas aparece. Era a injeção de ânimo que ela se prontificava a aplicar. Não condenava nossa tristeza, não exigia sorrisos pontuais, só sugeria esperar pela volta da alegria. E só de me lembrar dela e do seu conselho amoroso, senti que estava pronta para uma camada de cor. E o cuco abriu a casinha.

    Do outro lado da rua, ela já produzia as ondas de espuma branca na calçada azul e verde, com o sol muito forte, refletindo as cores metalizadas do sabão em pó. Me encostei na janela, como faço há anos, e a mulher com que falo tão pouco e da qual preciso tanto, abanou uma das mãos e gritou algo como "sumida". Que no idioma da minha tribo significa: senti a sua falta. Olhei o mar no concreto o quanto pude e por ele também me senti olhada. Olhei para mulher que inaugura meus sábados e me lembrei das camadas que ainda tenho, mesmo quando não posso ver. 
 
    A mulher do outro lado da rua lavou toda a espuma branca, desligou a mangueira de água e em minutos a calçada será de novo um cimento fosco, embora limpo, com restos de tinta verde e azul. 
    Saí da janela, arrumei a cama, fiz o café e desejei comprar um relógio cuco. Minha avó esteve sempre certa. O atraso é permitido, a ausência não. A calçada bicolor que me alegra, o trabalho cheio de dignidade da mulher que sente a minha falta, um sol cheio de sábado e uma espuma vigorosa que me leva ao mar.
    Minha avó nunca me explicou a melancolia, nem palavra nem sentimento, mas ensinou que era temporária, durasse o tempo que fosse.
 
     Minha avó calada e risonha, nesse sábado, me tirou da cama e apontou em mim, o azul e o verde. Sem dizer, ela me explicou que sempre existe uma porta meio aberta, um disco não ouvido, um livro muito bom pela metade, uma manhã de sábado com as janelas ocupadas por um corpo, cheiro do café pelo apartamento, um poema que ainda não nos conheceu. E que há ainda o que não se cumpriu, o que nunca se cumprirá, mas que talvez sim e só por isso já é uma alegria de espera.

    E que há crianças ouvindo histórias, contando histórias e sonhando histórias. Que às duas da manhã também poderá se lembrar do amor antigo, do velho amigo, da tia que dava dinheiro de aniversário. Que imobiliárias ou trevo de quatro folhas só dão sorte se pintarem a calçada de verde e que o azul na frente da loja de produtos para piscina é a estratégia mais antiga do marketing e que devia retornar. Disse também que eu agradecesse a quem me vê todo sábado e quando eu atraso sente a minha ausência. Minha avó tão silenciosa sempre, quando falava do pássaro do relógio, falava também que sempre há um pé no ar, enquanto o outro está no solo. O sonho e os dias de calçada cinza. O azul e verde das ondas e também a calçada de concreto.

    De longe, vejo a mulher que lava a  calçada todos os sábados, andar até o ponto de ônibus e, mais uma vez, ela abana a mão para mim. Um pé no ar e o outro no solo, sem desequilibrar ela entra no ônibus e só nos veremos, de novo, no próximo sábado. É o que eu espero. 

 


 

domingo, 20 de outubro de 2024

Penelope obscura

    A cama não é mais fria, o almoço não parece mais insípido, nem o corredor mais longo ou a porta mais pesada. Os latidos dos cães ainda aparecem ao fundo dos áudios, chamadas de vídeo ou reuniões online, que eu faço de casa, os varais estão sempre com roupas penduradas, os vizinhos são os mesmos desconhecidos que, se variam, eu nem noto.

    Aquela árvore em frente ao prédio é a mesma; de raízes e troncos familiares, mas folhas que caem e crescem todos os anos. O porteiro ainda guarda as cartas que chegam para você, o zelador ainda me chama por outro nome e o nome do prédio, da rua, do bairro ainda impregnam a minha identidade — algum dia falamos sobre isso e lembramos de cada um dos nomes de todas as ruas em que moramos — Isso também é a nossa história, você disse.

    Os furacões ainda varrem Miami, os canais de águas pluviais nos centros urbanos do Brasil ainda transbordam, os deslizamentos em Minas permanecem assustadores. Há queimadas, secas, chuvas torrenciais e tudo pode ser transmitido ao vivo em qualquer rede social, não dependemos mais do Plantão da Globo. 
    Os automóveis ainda poluem, o agronegócio também, continuo uma carnívora fajuta e dessa minha fraqueza você se orgulhava bastante. Temo mais pelo futuro coletivo do que pelo meu, hoje; talvez essa seja a única mudança.
    As capivaras ainda se reproduzem alucinadamente ao longo do leito do rio da cidade e a Penelope obscura continua ameaçada de extinção. Nenhuma mata que proteja nenhuma espécie por aqui.

    Ainda tenho pesadelos quando acordo e volto a dormir; mas nem por isso eu me rendo a sair da cama cedo nos fins de semana; atravesso cada um deles, às vezes grito ou acordo sobressaltada e com o coração disparado, mas não me rendo. 
    Uma vez por ano vou à dermatologista para ela explorar cada uma das minhas pintas e ver se ainda é prudente cada presença dessas na minha pele. Ainda vou ao supermercado na volta do trabalho ou aos sábados pela manhã; ainda corto as unhas do pé bem rentes à pele e compro meus tênis um número a mais do que os outros calçados. Ainda me lembro do seu rosto; às vezes com detalhes, mas não forço a memória, espero que um dia se apague.
 
    Ainda compro muitos livros, menos do que eu gostaria e mais do que o apartamento será capaz de suportar um dia. Mas quase não frequento mais os cinemas da cidade, todos os cinemas de rua foram fechados, só as salas do shoppings repletas de títulos comerciais permanecem. Ainda gosto de caminhar, ainda gosto de cantarolar no banho, ainda gosto de chorar quando um nó na garganta me surpreende em qualquer elevador da cidade, ainda gosto de sonhar e saber dos sonhos alheios. Ainda pinto as unhas de vermelho e as paredes do apartamento de branco e terracota ou outra cor, uma vez por ano.
    Ainda acho o banho terapêutico, assim como o ioga, a dança, a poesia e os álbuns do Nick Cave. Ainda acho que olhar o céu do basculante do banheiro é um privilégio imobiliário secreto.
 
    Ainda jogam futebol no campinho da rua de cima, ainda soltam fogos nos dias de Brasileirão, ainda torcem pela seleção, embora a camisa amarela clássica tenha perdido espaço nos últimos tempos. Ainda há crianças que soltam pipas coloridas, fazem bolas de sabão e jogam amarelinha, aqui na nossa rua. Ainda há feira no bairro às quartas e o caminhão de coleta seletiva continua passando às segundas. 
    Ainda perguntam por você, cada vez menos, e eu não sinto mais constrangimento em responder. Quando disse que ia para outro país, não doeu tanto. Mas a primeira vez que eu vi debaixo do seu nome um outro endereço, senti que ter a rua só para mim era um peso difícil de suportar. Não foi.
 
    Nada perdeu a cor, o brilho ou o significado com a sua partida; nada desmoronou, desbotou ou se rompeu. Pelo contrário, tudo o que não permanece igual, não foi porque morreu, mas outra coisa se agregou ao que já era; como uma molécula que se junta à outra e forma uma terceira.   
    Nada silenciou — mesmo que em algum tempo eu desejasse — nada precisou ser coberto, retirado, apagado ou destruído. Falar um nome, explicar a partida, pagar a conta de água e luz sozinha não foi mais difícil do que não ter com quem dividir uma rua. Como Penelope obscura, sobrevivo, ainda que o ambiente não seja sempre favorável.