São os mesmos, embora sejam muitos outros. O mesmo sol, mas também, décadas de anos de sóis. Sentados no jardim babélico do prédio simplório, são dois, acompanhados de muitos outros, que os trouxeram até essa calmaria da manhã de inverno num domingo.
Ela está vestida com uma malha de tricô verde água e um cardigã de lã vermelho, o que me faz imediatamente lembrar da minha mãe e a sua composição de cores muito expressiva. Ela tem um corpo magro e de baixa estatura, é uma dessas idosas que parece diminuir de volume corporal a cada ano, até um dia desaparecer completamente.
Está sentada numa cadeira, muito bem posicionada no sol, e tem um ramo de flores secas nas mãos, que ora parece acariciar ora trançar como se dali saísse algo, como se as mãos produzissem um futuro. Ela não está só. Embora sua concentração no que tem nas mãos pareça afastá-la do presente.
À sua frente, com os joelhos apontados para os da idosa, há um homem adulto, sentado em um degrau de cimento, que separa o jardim da entrada para o prédio. É um homem grande de cabelos pretos, lisos, cujo o corte lembra ao de um menino de onze anos. Seus ombros estão curvados, como se diminuísse a própria altura para se aproximar da velha mulher. É adulto, mas parece filho; e talvez por isso, e pela calça curta, pela camisa de botões e uma franja redonda que cai sobre os seus olhos, seja uma imagem pueril. Ele também tem um ramo seco nas mãos. Tenta imitar os gestos da mulher e estão em silêncio.
São duas cabeças iluminadas pelo sol de julho, em um jardim que eu queria que fosse meu, em um prédio cuja pintura descascada expõe o fenecimento das coisas. São dois corpos próximos e gentis um com o outro, cujos joelhos apontam para um tipo de partilha que é terna e melancólica. Movem as mãos e não se olham, permanecem em um silêncio confortável que só é possível em uma intimidade antiga.
Não sei como se sentem às dez da manhã de um domingo de inverno. Ele parece triste e ela ausente. Mas não parecem sós, debaixo desse sol que compensa todo o cinza da semana anterior.
Certamente esse domingo é único e o mesmo de muitos outros, quando eles tinham mais do que ramos secos nas mãos e menos tempo para o sol da manhã.
O prédio é baixo, o primeiro andar é no nível da rua, duas gaiolas em duas janelas de um apartamento remonta a um passado próximo — no qual gaiolas não eram tristes — a fachada rosa desbotada, com o sol, fica mais bonita e ainda tem o jardim que é do prédio, mas que agora é deles dois.
O jardim é o menos arrumado possível, é uma profusão de espécies vegetais que se sobrepõem sem nenhuma geometria prévia, são cores, formas e texturas que se misturam; a desordem mais bonita, que também explica o que são as relações familiares.
O prédio descascado, com gaiolas na janela no Centro da cidade, o jardim com muro baixo, a placa de propaganda de coxinhas e dois adultos expostos ao sol do inverno parece coisa de um outro tempo.
Ela na cadeira e ele no degrau em um jardim muito acessível, em uma comunicação sem palavras, sem olhares, ao menos no presente. As mãos dela inquietas, os dois com raízes e cores que se embaraçam numa profundidade que ninguém pode ver.
Acho que a tristeza nos ombros dele é pela perda iminente, acho que as mãos trabalhadoras dela é pela tentativa de permanência. Talvez ele já lamente a partida marcada dela e ela não autorize a sua maternidade de um homem já crescido. Uma mãe é uma mãe de uma pessoa a quem sempre poderá carregar; um filho cabe sempre no colo de sua mãe.
Entendo o luto recíproco aos qual os dois estão submetidos nessa manhã tão pacífica e quente.
Quando ela deixá-lo, ficará o homem de cabelo tigelinha completamente órfão e irremediavelmente condenado à vida adulta. Um adulto que perde os pais, talvez a mãe ainda mais, fica vazio da criança em si. Porque aqueles que o viram sempre filho não estarão mais lá. É triste, bonito e caótico como o jardim no qual eles se fundem agora. Um dia, os joelhos dela não estarão tão voltados aos dele, um dia, as suas mãos serão para sempre quietas.
A mulher sussurra alguma coisa, ele se abaixa um pouco mais para ouvi-la, depois, se levanta, busca um outro ramo de vegetal no jardim e entrega a ela, que volta os olhos e os trabalhos para a folha seca.
Aos domingos, dois quaram ao sol cerrados em si mesmos. Há tanta intimidade nesse desconhecimento. Ela não se lembra, ele a perde um pouco mais. Uma mãe e um filho fechados ao sol e entrelaçados sob um mesmo solo; é esse o jardim que sempre se refaz.
Alguém apaga a lata de lixo perto da porta e o maço de cigarro em cima da mesa, dessa foto, por favor. Obrigada.
Edita para mim e tira tudo o que é cotidiano e doméstico, apaga da imagem a pessoa comum, cercada do ordinário e tira as lembranças de um lugar que não existe mais. A lata de lixo azul da casa, que a vizinha da frente deixou quando se mudou e falou que podíamos ficar com ela e o maço de cigarro da tia que morreu faz tempo. Apaga.
Tem como editar e tirar essas pessoas do Arco do Triunfo, atrás de mim? Se alguém conseguir, agradeço.
Me deixa em Paris sem transeuntes, apaga a bolsa neon do turista americano, o vendedor de livros usados, carregando sua mercadoria lá longe, os monges budistas de mantos terrosos, os turistas ajoelhados com as câmeras contra a luz, buscando o ângulo indelével da cidade que nunca está vazia.
Tem como apagar esse cachorro de rua que está na porta da igreja no meu casamento? É a foto favorita do meu álbum, mas com esse cachorro aí...
Edita para mim e apaga o traço mais autêntico de qualquer cidade brasileira que é o cachorro caramelo religioso. Tem como deixar esse casamento imaculado, seguro de participação externa, um casamento de luxo, com equipe de seguranças, produtores de imagens, códigos nos convites e somente o ensaiado?
Edita para mim e tira o meu ex da foto, é esse alto de camiseta vermelha. É a única foto que eu tenho da família inteira no último ano do meu pai ainda vivo e eu queria guardar.
Apaga as decepções, a desilusão do sonho de uma vida partilhada que não se concretizou. Apaga as mentiras, as traições, a indiferença e a irresponsabilidade emocional. Apaga as promessas, as noites estreladas, o ombro no qual eu chorei quando soube que o meu pai estava doente, a mão que se estendeu quando eu fui demitida do trabalho, desligada do projeto e reprovada no concurso.
Tira o homem de camiseta vermelha que dirigiu apavorado por 600 quilômetros, quando eu disse que precisava. Apaga a minha dor e o abismo em que eu mergulhei, depois de conhecer a altura de um sentimento para o qual nunca se está preparada? Tem como editar e apagar a pessoa mais alta da foto e todas as marcas que ainda estarão aqui depois da edição?
Edita pra mim e apaga a sonda do nariz do meu bebê? É a foto que restou de uma vida brevíssima do amor com o qual eu sonhei longamente durante a minha. Queria ter uma foto sem dor, sem as lembranças de um parto sem o cume do choro do filho, os dias de braços vazios e as noites vigiando o sono tão vulnerável que eu trouxe à luz e não pude mantê-lo mais acordado.
Apaga toda a dor das semanas seguintes ao nosso primeiro olhar que não aconteceu no centro cirúrgico, só depois, atrás de um plástico e que mesmo assim me atravessa até hoje e o desespero da ausência de batimentos cardíacos trinta dias depois do nosso primeiro encontro. Reconstrói uma imagem que não aconteceu; meu filho sem sonda, um recém-nascido com futuro.
Edita pra mim e apaga a moça loira de cabelos longos da foto? Era minha amiga, mas agora é bolsonarista.
Apaga a desconfiança inicial, o susto, a desagradável constatação de um afastamento tão profundo, o apoio público dela aos discursos, às violências travestidas de cristianismo, apaga a minha vergonha de não tê-la conhecido antes.
Edita e retira dessa foto todos os sofrimentos que ela me ajudou a atravessar, os meus sonhos que ela incentivou, a generosidade do teto, do banho, dos livros e cópias que ela dividiu comigo. Apaga a minha admiração pelas suas renúncias e perseveranças.
Edita pra eles e me apaga das memórias dos outros com os quais eu rompi?
Quem me editaria na foto que não deveria estar mais? Que partes de mim deveriam ser apagadas e quais outras iluminadas pelo pincel de pixels do editor disponível?
Quais os álbuns que eu não frequentarei mais, inteira ou fragmentada? Meus ombros largos, meus braços brancos com pintas, minhas mãos de dedos longos e unhas quase sempre esmaltadas, meus dentes proeminentes e a ponta do meu nariz arredondada.
Edita pra mim essa memória e não apaga nada? Edita e realça os detalhes ordinários, as sardas, as cicatrizes, as calçadas acidentadas, as paredes descascadas, os copos de plástico, os bolos sem confeitos, os amores que passaram, as amigas para as quais nunca mais ligamos para desejar um feliz aniversário, os filhos que não pudemos segurar, os cães de rua, os noivos da classe trabalhadora, as heranças baratas dos vizinhos. Não edita pra mim e não paga.
Para criar peixes é indispensável tempo, dedicação e ampliação determinada dos aprendizados. É preciso não temer os fracassos e saber, de antemão, que eles são tão presentes quanto as linhas onduladas na água em que crescem os vertebrados mais antigos do mundo.
Criar peixes é, antes de tudo, aprender a criar peixes e, no entanto, nunca saber em definitivo.
É possível criar peixes sem saber nadar, é legítimo criá-los sem nunca entrar na água; mas só quem mergulha pode conhecer o íntimo dos peixes. Dar braçadas na água, respirar por baixo da superfície e enxergar o escuro do mundo subaquático são essenciais para que a relação se estabeleça noutra perspectiva. O distanciamento é possível, mas só a aproximação radical entregará o sublime.
As peculiaridades na criação de peixes são muitas e constantes. Conhecer os limites da água para o tipo de animal ao qual se pretende dispensar cuidados; se é um aquário, açude ou lago. E, principalmente, saber ao que se pretende a criação, se é essencialmente ornamental, para consumo ou entretenimento para pescadores amadores. Quaisquer que sejam os objetivos e as dimensões do criadouro, a nenhuma é possível abandonar depois que os peixes e o criador estabelecem relação.
O coração dos peixes bate tal qual aos dos humanos, embora tenham a metade das cavidades, somente duas, o átrio e o ventrículo e também podem se despedaçar; mesmo que a ciência não confirme o processo em ambas as classes taxonômicas.
O tempo de vida de um peixe está intrinsecamente ligado aos objetivos da criação e a dedicação do criador. Peixes de aquário, por exemplo, são facilmente assassinados, involuntariamente, por excesso de alimentação.
Um peixe pode ter em média três anos, vinte ou sessenta anos de vida; e em qualquer dos casos é assustador que ele dependa de um humano bem intencionado e conhecimentos específicos.
Mas um peixe não é só vulnerabilidade. Há na fisiologia do animal uma tecnologia sensorial que identifica a aproximação de predadores, pelo olfato ou captação de movimentos na água. Para criar peixes, portanto, é preciso também cultivar confiança.
Para criar peixes é necessário saber chorar na água, aprender a linguagem dos peixes, nas vozes e ondulações ancestrais dos seres aquáticos. É preciso conhecer a história de sua classe, suas adaptações às transformações na natureza, algumas melhores desenvolvidas do que as humanas e respeitar seus vários tempos; de nadar, descansar, escapar, reproduzir e só ser. Para criar peixes é preciso não apressar etapas, deixar o tempo se liquefazer.
Para criar peixes é preciso abdicar do controle total. Ainda que a temperatura da água possa ser controlada, a iluminação artificial instalada, a alimentação medida e cronometrada, há sempre a possibilidade de intercorrências marcarem o destino e estabelecerem novas maneiras de criação. Criar peixes é também existir de um outro jeito. É criar um humano que cria.
Para criar peixes sem matá-los é imprescindível não exagerar na dose de cuidados, não querer sufocá-los nas águas muito límpidas, com os termômetros, os filtros e bombas hidráulicas. É salutar não ter os olhos nos peixes por muitas horas, é preciso também saber esquecê-los.
Para criar peixes, às vezes, é preciso desistir. Se nas horas, nos dias, nas semanas e nos meses em que mantê-los em cativeiro uma dor ameaçar aparecer, é melhor não continuar.
Talvez o mergulho tenha ensinado o amor aos peixes e isso se sobrepõe a criação deles. Amar peixes não é criá-los. Amar peixes não é tê-los consigo ou sempre em volta. Amar peixes não é decorar suas casas, iluminar cavernas artificiais ou dar um nome a eles. Amar peixes é desconhecer tudo sobre eles e só uma vez ter os olhos neles, mas nunca esquecer do brilho metálico de suas escamas.
O tempo entre a mão da mãe, soltando a do seu filho, no portão da escola, depois que o sino já soou, é diferente do tempo do homem que abriu e fechou o portão para mãe e filho. O gesto da mãe dura uma eternidade, até o filho crescer, ela morrer e o filho soltar a mão do próprio filho em outro portão de escola. Já esse tempo do homem é a sua força de trabalho, a produtividade do tempo que alimentará seu filho, cuja mãe soltou a mão também em outro portão.
A mãe sentirá por anos a mão do filho escapar da sua, voluntariamente ou não. O filho sentirá a mão da mãe soltar delicadamente da sua, para mais tarde, tê-la de novo a cada retorno.
Já o homem da guarita, precisa abrir e fechar o portão oito horas por dia; quanto menos durar cada vez, mais vezes poderá fazê-lo.
Quando o gato amarelo observa a chuva, ele se entrega completamente à contemplação das gotas, espalhando-se pelo piso escorregadio da varanda, pelas bordas das folhas das plantas, encharcando as roupas do varal da vizinha do apartamento de baixo, que saiu e não pensou que pudesse chover. Quando o gato entrega-se à observação da chuva, o tempo dele não escoa por entre valas, ralos, bueiros ou bacias de drenagem; o tempo dele agarra-se, mata a sede e se despede das águas. O gato não perde com a chuva.
Quando de dentro do carro, às seis horas de sexta-feira, um dilúvio ameaça a cidade, cujo trânsito já está lento, qualquer água vinda do céu é malquista, a cada gota, um minuto a mais de caos, um minuto a menos de descanso. O gato se expande em tempo e satisfação; a gente se desmancha de ansiedade e derrota.
Uma tartaruga atravessa o quintal. Na aspereza das suas dobras, histórias humanas e de outros animais que ninguém mais conhecerá. A tartaruga viverá mais que os humanos, gerações a verão atravessar o quintal.
Uma tartaruga atravessa o quintal, enquanto os humanos da casa nascem, brincam com ela, a abandonam, aprendem a escrever, a se comportar, a beber, a se apaixonar, a se desiludir, a trabalhar, a casar, a ter filhos e, depois, se deitarem no chão do banheiro de angustia, saltarem de uma ponte seguros por um elástico porque querem desafiar o medo, se trancam no carro, antes de um decisão, por covardia e perdem lembranças no esquecimento da idade avançada, que é sempre menos do que da tartaruga. Tudo isso, enquanto a tartaruga ultrapassa os tempos no terreno quadrado nos fundos da casa.
Quando a educada recepcionista pede paciência, na antessala do consultório, é quase com uma dor física que recebe o pedido, embora ainda não seja, porque teme chegar esse momento e cada minuto de espera é a possibilidade de mais tempo até a cura ou, mesmo, da impossibilidade da salvação. Como explicar que talvez não exista tempo para esperar mais?
A paciência se irrita com a temperatura do ar-condicionado, com o casal de idosos que assistem, cada um no seu celular, a vídeos aleatórios, sem fones de ouvido, com o barulho das bolhas de ar do filtro de água, a cada vez que é acionado, com o cheiro de aromatizador de lavanda, quando abrem a porta do banheiro, com o futuro que teme não ter, com uma doença que talvez se espalhe, enquanto aguarda os quinze minutos de atraso do doutor.
Mas depois, quando o médico explica o prognóstico, a paciência, enfim, se assenta, se deleita com o futuro que virá, com os muitos vídeos que ouvirá sem escolha, com os aromatizadores de ambiente e as bolhas de ar nos filtros de água. A paciência quer ouvir do digníssimo homem da ciência que está tudo bem um caroço, uma protuberância cutânea sem importância. A paciência quer se esticar na cama do consultório e dividir com todos da antessala, corredor, andar, prédio, quarteirão e avenida, que tudo bem os quinze minutos mais de espera e que o seu futuro precisa começar já; que embora haja tempo, não há tempo a perder.
Na área de embarque de um aeroporto, há alguém que espera por duas horas e não se ressente, esperará por mais duas e não reclamará com ninguém. Quatro horas mais e alguém retornará de um ano de distância, trezentos e sessenta e cinco dias de desaparecimento físico do mesmo território. Quatro horas de espera dócil.
No mesmo aeroporto, alguém que não veio e outro alguém que se atrasou para uma chegada. Esperas que se prorrogarão e que talvez se dilatem tanto, que se solidifiquem em espera e nunca encontro.
O mecanismo do tempo é essa engrenagem que pede urgência para determinados eventos e paciência para muitos mais, que prepara uma mão para partida e a outra para uma acolhida infinita para além do portão da escola.
E se descobríssemos numa manhã de quarta-feira, que a ciência constatou o fim do mundo, num dia muito mais próximo do que os quatrocentos e oitenta meses que esperávamos viver? Que tipo de amantes seríamos depois dessa revelação? O casal que termina na véspera do carnaval para aproveitar os cinco dias sem compromisso romântico ou os dois jovens de vinte anos que se casam urgentemente para não terem o coração mais vezes partido?
Abandonaríamos a casa ou nos trancaríamos nela? Que casal de namorados seríamos se uma hecatombe se aproximasse dos nossos planos e dos futuros que poderiam ou não se realizar?
Nos dispensaríamos da angústia partilhada dos últimos meses de nostalgia ou mergulharíamos nela?
A quem perdoaríamos ou pediríamos perdão? Qual arrependimento teríamos, por azar do fim do mundo decretado? De qual decisão equivocada nos orgulharíamos, por sorte da destruição completa revelada?
E essa derrocada anunciada nos levaria para uma análise sociológica do nosso romance até aqui ou nos afastaria de nós para nos entregarmos à humanidade agonizante? Militaríamos por um fim digno para todos ou beberíamos taças de vinho em todos os jantares?
Se o fim do mundo fosse anunciado amplamente, com quem faríamos contato primeiro, se não estivéssemos em frente à mesma tela? Se escolhêssemos um ao outro, quem de nós falaria as primeiras palavras e quais seriam elas?
Além do futuro, o que mais perderíamos se o nosso e todos os amores do mundo tivessem os seus términos iminentes? É mais lamentável por ser amor ou só os amantes pensam nisso? Com que palavras enterraríamos os nossos mortos ou a nossa própria morte? E o que teríamos para inventariar para um outro mundo que substituísse esse nosso?
Um dente ferrado, um amor inventado, uma febre não explicada, um parente sem rumo. Uma porta aberta, uma entreaberta e uma ignorada. Uma janela quebrada, uma lateral do quarto de dormir. Um experimento, um verso ingênuo, uma musa de pescoço em riste no camafeu que compramos na feira de antiguidades da Praça XV. Um balde de tristezas, uma paixão não correspondida, um litro de aguardente intocado debaixo da pia. Uma caipirinha, uma pizza, uma igreja, um restaurante, um cinema, um museu, um pedaço de calçada favoritos no mundo.
Uma fogueira a ser feita, uma amizade que escorre por uma fresta invisível, uma esperança de mochila e tênis, que aprende a ler e a abaixar a tampa do vaso. Um homem cordial e outro que grita. Uma mulher submissa e uma mulher. Uma mãe sem memória, uma certidão de nascimento com paternidade desconhecida e dois ingressos para o show do Gilberto Gil. Um apartamento financiado, uma carreira que não se consolidou, uma via que ainda não tomamos, uma dúvida, várias dúvidas.
Qual o livro, a música, o filme, a peça, a obra de arte ou a dança que repetiríamos na despedida? O que levaríamos e o que ficaria de nosso para que os arqueólogos de um outro tempo nos descobrissem? E se ele achar uma colher, um talher que nunca escolhemos com cuidado, porque foi sempre o mais barato e prático, mesmo assim ele poderá saber de nós? E se ela achar um livro nosso com dedicatória minha ou sua ou as duas, com qual delas a arqueóloga desavisada se emocionaria mais?
Guardo com cuidado as cartas e os livros que me mandou e, mais, escrevo com cuidado as missivas e os textos nos livros que te dedico, talvez isso nos salve para a eternidade ou talvez as colheres é que nos mantenhará vivos.
Se o mundo acabasse antes dos quatrocentos e oitenta meses que calculamos ainda ter, o que pensaríamos de nós, da vida que compartilhamos até aqui? Essa vida entraria nas nossas prestações de contas como algo fundamental ou um recorte mais aprazível do que determinante nessa existência em risco?
Nós vamos à terapia, atravessaremos o Atlântico de novo e definitivamente ou nos despediremos na esquina. Só não vamos mais esperar pelo fim do mundo sem tentar existir um pouco mais ainda.